A recusa da cruz

Henrique Raposo

Expresso, 2014.12.27

É confrangedor comparar as séries e livros infantis dos anos 80 com as séries e filmes dos anos 2010. Quando é que passámos a assumir que as crianças são idiotas? Para compreenderem o que estou a dizer, só têm de comparar qualquer série dos incontáveis canais de desenhos animados da TV Cabo com "Era Uma Vez no Espaço", uma das séries da minha geração. Apostando na aventura espacial, o seu autor (Albert Barillé) colocava questões profundas à pequenada: o que é a morte? O que é Deus? O que é o inimigo? O que é a democracia? Além da profundidade da substância, convém ainda destacar as diferenças na forma, que são ainda mais decisivas. Os desenhos animados de hoje têm um ritmo frenético; um plano não sobrevive mais do que três segundos; os miúdos não são treinados para pensar, mas sim para sentir. Ao invés, o ritmo de "Era uma Vez no Espaço" é lento. Aliás, para os padrões de 2014, esta série infantil de 1982 é lenta e silenciosa até para os adultos. Não, não estou a brincar: a profundidade e a secura narrativa de "Era uma Vez no Espaço" são estranhas para os adultos de 2014. O ritmo dos "CSI" é mais primitivo e pueril do que o ritmo pensado por Albert Barillé.
Qual é a causa da estupidificação em curso? A meu ver, o problema é a recusa militante do sofrimento, é a ilegalização da morte e da dor. Até a tristeza já é considerada uma doença. Traduzindo para linguagem cristã, o problema é a recusa da cruz. É a recusa da ideia de que a bondade só existe depois do sofrimento. É a rejeição da redenção como algo que só nasce após o confronto com o mal. Os velhos contos infantis (Irmãos Grimm, por exemplo) forçavam as crianças a um confronto direto com a maldade, com a morte, com a perda. A brutalidade desses contos era uma espécie de programa de vacinação moral que tratava as crianças como futuros adultos e não como eternos Peter Pan. Ao invés, os desenhos animados dos incontáveis canais infantis oferecem uma versão higienizada da vidinha. Não há mortos, dor, pais imperfeitos, doença ou verdadeira maldade, não existem ambientes negros e soturnos. Pior: já nem sequer há uma narrativa. Os desenhos animados estão a transformar-se em meros jogos interativos, didáticos e técnicos (ensinar a contar, por exemplo); não são histórias destinadas à imaginação moral dos miúdos, são repertórios de coisas "úteis" para o seu futuro escolar.
Mas, mesmo no sentido da utilidade escolar, esta cultura técnica e amoral só pode ser prejudicial. Porquê? Sem sofrimento, não se consegue alcançar nada digno de registo. Se é educado a fazer apenas aquilo que lhe dá prazer, um garoto nunca vai perceber o sacrifício que está a montante de uma carreira de médico, engenheiro informático ou escritor. No fundo, a cultura que ilegaliza o sofrimento nos desenhos animados é a mesma que diaboliza a memorização da tabuada; a sociedade que recusa confrontar os jovens com o conceito de pecado é a mesma que fecha os olhos à destruição das regras gramaticais. Acham que estou a exagerar? Então façam o favor de comparar "Era uma vez a Vida" com os filmes que a RTP, SIC e TVI transmitem durante este período das festas. A cruz faz falta.

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