A Catedral

Diário de Notícias, 20081120

Maria José Nogueira Pinto
Jurista

Há cerca de dez anos, em Madrid, veio parar-me às mãos o livro de Vallejo- -Nágera A Porta da Esperança. O autor - médico, escritor, pintor - era uma personalidade nos meios sociais e culturais espanhóis pelo seu multifacetismo, levado a cabo com a perfeição de que só os muito dotados são capazes. O tema - o testemunho dos seus últimos meses de vida - pareceu-me tão terrível como fascinante, tão insólito como despudorado. A razão do livro, que nada teve a ver com autocompaixão ou exibicionismo, radicou nos milhares de pedidos que Vallejo-Nágera recebeu para perpetuar por escrito um testemunho audiovisual após a intervenção num programa televisivo em que explicou a sua situação de condenado à morte por uma doença oncológica incurável e fulminante e de como esse facto era, para ele, a abertura da porta da esperança. E como já não conseguia fisicamente escrever desafiou José Luis Olaizola (ambos foram prémios Planeta) para o ajudar.

Uns anos depois li, com igual curiosidade e emoção, o livro de José Maria Cabral O Desafio da Normalidade - impressões do fim da vida. Tal como Vallejo-Nágera, também ele médico e condenado pela mesma doença, uma previsão de pouco tempo de vida e idêntica dose de esperança. Ao longo do livro, sem qualquer pose perante a morte, sem recorrer à facilidade de nos impressionar, aos que não temos prazo certo nesta coisa de estarmos vivos e de aparente saúde, narra, apenas, este desafio - o de viver normalmente a vida face a uma morte iminente - e de como ele pode, afinal, ser ganho.

Agora tenho nas mãos a Catedral. Um livro em que Salvador Vaz da Silva (47 anos) regista um percurso de seis meses, o tempo de vida máximo que lhe foi diagnosticado. Uma viagem no espaço aberto e sem limites da blogosfera que rapidamente se transformou numa caminhada colectiva, à qual se foram juntando pessoas de todos os géneros e pelas mais diversas razões. Afinidades, curiosidade, partilha formaram um exército na defesa do exercício puro da esperança, contra toda a racionalidade de um diagnóstico abrupto e fatal. Sem falsos pudores, na linguagem expressiva e sincopada dos bloguistas, com a irreverência de uma juventude ainda tão próxima e uma ternura que só o mais íntimo da condição humana consegue desvendar, o livro relata o dia-a-dia desse combate desigual, numa incessante troca de mensagens, formando uma rede de apoio e resistência, de dar e receber.

Salvador Vaz da Silva tornou-se um arquipélago para o qual foi convergindo esta multidão de navegadores - os "catedralistas" - prontos a partilhar a sua luta e, através dela, chegar ao fundo de si mesmos, num processo reflexivo próprio e individual sobre o sentido da vida e a consciência da morte que são constantemente empurrados, pela cultura dominante, para os recantos mais obscuros.

Viver habitualmente o fim da vida e fazer-lhe face é comer a morte, com dentadas pequenas, como se fosse uma bolacha. Um processo difícil: o homem sempre rejeitou a ideia do sofrimento e morte como a evidência mais terrível da sua precariedade e vulnerabilidade. E, nas últimas décadas, a melhoria das condições de vida, o progresso científico e técnico e uma excessiva e mal digerida informação criaram a expectativa de uma longevidade sem limites definidos.

Mas sendo certo que aquilo que distingue o homem dos outros seres vivos, aquilo que representa real dimensão do seu drama e da sua grandeza é o conhecimento da vida e da morte, do princípio do fim, só pode ser perverso este exercício colectivo de ilusão que nos reduz a uma semi-humanidade, nos desarma da força e da esperança, nos priva da nossa quota-parte de luta.

As livrarias estão cheias de livros que ensinam as pessoas a manter-se jovens, a fazer dietas milagrosas, a fazer amigos, a convencer o patrão ou os eleitores das suas capacidades, a realizar negócios fabulosos, ou mesmo a ter sucesso. Estes três homens, porém, produziram livros que nos ensinam a acreditar. Vale a pena lê- -los, pois representam uma porta para a nossa transcendência, tantas vezes esquecida, e para a esperança, tantas vezes recusada.

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