Crise, pobreza, pombos e coelhos

CRISE, POBREZA, POMBOS E COELHOS

Diário de Notícias, 20081110
João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Imagine uma empresa de pombos correios com uma epidemia de gripe das aves; perante a catástrofe a administração decide passar a enviar as mensagens por... coelhos. Esta escolha insólita seria paralela ao que se prepara na actual crise financeira, com políticos a manipular o complexo sistema económico. Tal tolice, mesmo se recorrente de anteriores turbulências, é mesmo muito estúpida.

A crise nasceu por graves erros e crimes de economistas, gestores e financeiros. Embriagados de sucesso, caíram em euforias que agora ameaçam o mundo. Eles têm, sem dúvida, a responsabilidade principal na catástrofe, pelo que é necessário e urgente punir e substituir esses especialistas infectados. Mas têm de ser trocados por outros financeiros, os únicos que percebem alguma coisa do complexo sistema. Se um médico mata, por erro ou negligência, não se confia o tratamento a contabilistas ou ministros. Com políticos tratando destes assuntos, a única certeza é desastre. Coelhos voam menos que pombos doentes.

Treinados na luta partidária e marketing eleitoral, os políticos são hoje chamados a intervir em tudo, da família ao clima. Será espantoso que corra mal? O mecanismo económico é incrivelmente delicado e subtil, como aliás manifestam os acontecimentos recentes. Muitas ideias populares e certezas evidentes provêm de erros com efeitos devastadores. O inefável Sarkozy a alinhar soluções e os líderes do G20 reunidos a reformar o sistema monetário mundial constitui um pesadelo pior que a própria crise.

Caso semelhante de interferência trapalhona num delicado fenómeno económico é a recente discussão sobre a fixação do salário mínimo. Esse indicador é de enorme importância para uma das classes mais sensíveis da nossa sociedade, os pobres. Mas quem o determina não percebe nada dessa realidade e decide baseado em mitos, anseios, boas intenções. Não admira que o resultado seja por vezes o oposto do desejado, porque coelhos não são pombos correios.

Ao contrário do que se diz, o salário mínimo não é contributo do Governo para a justiça, porque nele o Estado não gasta um tostão de ajuda. O que faz é interferir nas decisões dos pobres. Nem tem nada de solidariedade, porque se trata de uma imposição regulamentar. Senão, porque não fixar já nos mil euros, aumentando imenso a justiça e a solidariedade?

A imposição de um salário mínimo constitui uma proibição legal de todos os empregos que paguem menos que isso. Os pobres que mantenham o trabalho ficam claramente beneficiados. Mas aqueles que virem os seus postos eliminados ou passados à clandestinidade sofrem muito. Para quem se preocupa mesmo com a pobreza, e não com a própria imagem política, essa possibilidade deveria fazer pensar. Legaliza-se aborto e consumo de droga, proíbe-se o emprego barato. Medidas simplistas têm efeitos inesperados.

O Governo desde que entrou em funções subiu o salário mínimo acima da inflação e outros salários. O valor, de 374,7 euros em 2005, foi aumentado 3% em 2006, 4,4% em 2007 e 5,7% este ano. A proposta de 450 euros para 2009 significa mais um aumento de 5,6%. A acumulação destas quatro subidas representa um acréscimo total em termos reais superior a qualquer período equivalente desde o 25 de Abril, com excepção de 1978-1981 e 1989-1993, épocas com crescimento acima do dobro do actual.

Tal aceleração política parece rematada loucura económica, aumentando a rigidez quando se aproxima uma crise. As associações de empresários, protestando inicialmente, acabaram por aceitar. Mas eles e o Governo são ricos, ignorando alegremente a realidade dos pobres. As associações das pequenas e médias empresas - compostas, não por capitalistas abastados, mas também por pobres - silenciosas em anos anteriores, ficaram horrorizadas com o valor anunciado. Devem conhecer muito melhor o impacto da medida que o ministro ou a CIP. Entretanto, "Vieira da Silva garante que não é um aumento de 24 euros no salário mínimo que vai abalar o desempenho das empresas e da economia" (RR, 20/Out).
Como é que sabe?

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