DONOS DO FUTURO
Diário de Notícias, 20081117
João César das Neves
Professor universitário - naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
A palavra mais repetida no resultado das eleições americanas é "futuro". Muitos disseram que o mundo mudou, se abriram novas perspectivas, se sente um espírito de oportunidade. Tudo isto é decisivo num momento tão perigoso da história da América e do mundo. A crise actual mostrou a todos que estamos no mesmo barco, navegando ou afundando juntos. A humanidade deseja felicidades ao presidente Barack Obama.Mas o futuro é a mais ambígua das realidades. No noite das eleições, e enquanto se vivia uma unanimidade à volta do candidato eleito, ouviram-se muitas vozes gritar que o futuro tinha sido derrotado e se voltava para trás. Não por causa do presidente, mas dos referendos anexos. Como sempre nos EUA, esta complexa eleição incluía votações em temas especiais: 153 em 35 dos 50 estados. Essas consultas, como sempre, tratavam dos assuntos mais variados, do ridículo ao indispensável. Ao contrário do que se disse, o conservadorismo não dominou as votações. Na Califórnia (por 52%) e no Dakota do Sul (55%), por exemplo, foram rejeitados limites ao aborto. No estado de Washington foi permitido o suicídio assistido por médico (59%) e no Michigan a investigação em células estaminais (53%), enquanto o Colorado rejeitou largamente (73%) que a vida humana começa na concepção.
A fúria dos auto-intitulados progressistas, no entanto, nada vê para lá de quatro referendos muito particulares. No Arizona (56%), Califórnia (52%) e Florida (62%) proibiu-se o casamento de homossexuais, enquanto no Arkansas (57%) se impedia a adopção por casais não casados, homossexuais ou não. Toda a evidência manifesta que não se tratou de resultados chauvinistas ou aberrantes. Nesses estados, Obama ganhou confortavelmente na Califórnia (62%), marginalmente na Florida (51%) e teve votações respeitáveis no Arizona (45%) e Arkansas (39%). Nada disto influenciou os comentadores, que decretaram obscurantismo, discriminação, recuo.
O século globalizado já viu duas guerras mundiais de valores. Há vinte anos ainda se lutavam as últimas campanhas do primeiro embate civilizacional mundial, que começara cem anos antes. Tratava-se então de defender a empresa e o mercado contra ataques da sociedade socialista e economia planificada. Como agora, os agressores tinham a certeza de estar com o futuro, o que lhes dava uma raiva e arrogância imparáveis.
Hoje, os mais jovens não conseguem acreditar que ainda nos anos 1970 e 80 as visões marxistas não só eram activas mas consideravam-se a única alternativa razoável. Para os "progressistas" de então, não se tratava de um embate de ideias, mas da luta entre o futuro em ascensão e o passado bafiento, entre defensores da modernidade e cadáveres ideológicos que se desconheciam como tal. Hoje sabemos afinal que cadáveres eram os comunistas. Alguns poucos ainda mexem mas já não defendem nada. Limitam-se a atacar tudo. Saem do túmulo para bramar nas crises. Na guerra civilizacional de hoje, também os que atacam a vida e a família se acham donos do futuro, menosprezando os opositores como fósseis. Também agora o progresso e a liberdade só se imaginam com aborto, eutanásia, divórcio e homossexualidade, como antes com plano quinquenal, ditadura do proletariado e cooperativas forçadas. Aliás, não só a retórica é semelhante, mas reencontramos nas batalhas os veteranos derrotados do dirigismo económico, reciclados em defensores da liberdade de costumes.
Marx ensinou que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa (O Dezoito de Brumário, de Luís Bonaparte, 1852, cap. 1). Temos de dizer que esta segunda guerra mundial dos valores é muito insólita. Empresa e mercado eram instituições que, embora naturais, tinham e têm traços particulares controversos, que podiam e podem ser contestáveis. Mas vida e morte, família e casamento, sexo e amor não são elementos volúveis e discutíveis, ao sabor da opinião momentânea. Os novos progressistas escolheram para alvo de contestação traços fundamentais da natureza humana. Esquecem que o futuro a Deus pertence.
João César das Neves
Professor universitário - naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
A palavra mais repetida no resultado das eleições americanas é "futuro". Muitos disseram que o mundo mudou, se abriram novas perspectivas, se sente um espírito de oportunidade. Tudo isto é decisivo num momento tão perigoso da história da América e do mundo. A crise actual mostrou a todos que estamos no mesmo barco, navegando ou afundando juntos. A humanidade deseja felicidades ao presidente Barack Obama.Mas o futuro é a mais ambígua das realidades. No noite das eleições, e enquanto se vivia uma unanimidade à volta do candidato eleito, ouviram-se muitas vozes gritar que o futuro tinha sido derrotado e se voltava para trás. Não por causa do presidente, mas dos referendos anexos. Como sempre nos EUA, esta complexa eleição incluía votações em temas especiais: 153 em 35 dos 50 estados. Essas consultas, como sempre, tratavam dos assuntos mais variados, do ridículo ao indispensável. Ao contrário do que se disse, o conservadorismo não dominou as votações. Na Califórnia (por 52%) e no Dakota do Sul (55%), por exemplo, foram rejeitados limites ao aborto. No estado de Washington foi permitido o suicídio assistido por médico (59%) e no Michigan a investigação em células estaminais (53%), enquanto o Colorado rejeitou largamente (73%) que a vida humana começa na concepção.
A fúria dos auto-intitulados progressistas, no entanto, nada vê para lá de quatro referendos muito particulares. No Arizona (56%), Califórnia (52%) e Florida (62%) proibiu-se o casamento de homossexuais, enquanto no Arkansas (57%) se impedia a adopção por casais não casados, homossexuais ou não. Toda a evidência manifesta que não se tratou de resultados chauvinistas ou aberrantes. Nesses estados, Obama ganhou confortavelmente na Califórnia (62%), marginalmente na Florida (51%) e teve votações respeitáveis no Arizona (45%) e Arkansas (39%). Nada disto influenciou os comentadores, que decretaram obscurantismo, discriminação, recuo.
O século globalizado já viu duas guerras mundiais de valores. Há vinte anos ainda se lutavam as últimas campanhas do primeiro embate civilizacional mundial, que começara cem anos antes. Tratava-se então de defender a empresa e o mercado contra ataques da sociedade socialista e economia planificada. Como agora, os agressores tinham a certeza de estar com o futuro, o que lhes dava uma raiva e arrogância imparáveis.
Hoje, os mais jovens não conseguem acreditar que ainda nos anos 1970 e 80 as visões marxistas não só eram activas mas consideravam-se a única alternativa razoável. Para os "progressistas" de então, não se tratava de um embate de ideias, mas da luta entre o futuro em ascensão e o passado bafiento, entre defensores da modernidade e cadáveres ideológicos que se desconheciam como tal. Hoje sabemos afinal que cadáveres eram os comunistas. Alguns poucos ainda mexem mas já não defendem nada. Limitam-se a atacar tudo. Saem do túmulo para bramar nas crises. Na guerra civilizacional de hoje, também os que atacam a vida e a família se acham donos do futuro, menosprezando os opositores como fósseis. Também agora o progresso e a liberdade só se imaginam com aborto, eutanásia, divórcio e homossexualidade, como antes com plano quinquenal, ditadura do proletariado e cooperativas forçadas. Aliás, não só a retórica é semelhante, mas reencontramos nas batalhas os veteranos derrotados do dirigismo económico, reciclados em defensores da liberdade de costumes.
Marx ensinou que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa (O Dezoito de Brumário, de Luís Bonaparte, 1852, cap. 1). Temos de dizer que esta segunda guerra mundial dos valores é muito insólita. Empresa e mercado eram instituições que, embora naturais, tinham e têm traços particulares controversos, que podiam e podem ser contestáveis. Mas vida e morte, família e casamento, sexo e amor não são elementos volúveis e discutíveis, ao sabor da opinião momentânea. Os novos progressistas escolheram para alvo de contestação traços fundamentais da natureza humana. Esquecem que o futuro a Deus pertence.
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