A secura dos interesses

Diário de Notícias, 20081124
João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Vivemos o período mais longo sem eleições nacionais da democracia. Passaram mais de mil dias desde as presidenciais de 22 de Janeiro de 2006, acima do máximo anterior de 916 dias entre as legislativas de 10 de Junho de 1991 e autárquicas de 12 de Dezembro de 1993. Em maioria absoluta, está na altura de balanço desta inaudita estabilidade. O sr. primeiro-ministro declarou há pouco não pensar nas consequências eleitorais da sua política (Rádio Renascença, dia 14, às 13.12), sinal de que não pensa noutra coisa e a campanha já começou.

Na Saúde, a atitude da primeira metade da legislatura foi invertida na segunda parte. Trocando de ministro para acalmar a contestação, o Governo alterou totalmente a orientação. Se alguém perguntar qual o modelo de sistema que o executivo propõe, a resposta é simples: todos.

Na Educação a luta continua. Mas pergunta-se se os confrontos têm como finalidade a melhoria da formação dos jovens. Num sistema que avalia professores mas não reprova alunos, a questão centra-se não nos objectivos sociais mas nos conflitos laborais. Com cada vez menos estudantes por razões demográficas, o excedente de docentes obceca todos os envolvidos, esquecendo o propósito da educação. Entretanto, contestação pública e violência escolar degradam a imagem dos antes prestigiados mestres-escola.

O sector com maior decadência no período é também o que menos depende do Governo, mostrando que os nossos problemas são mais fundos que a política. A Justiça, gozando da maior autonomia pela independência de tribunais e magistratura, encontra-se em estado lastimoso. É incrível como o sector conseguiu falhar todos os processos mediáticos em que se envolveu. Uns atrás dos outros, sucederam-se os crimes graves sem real condenação de culpados. Generalizou-se a ideia de que as gradas figuras sociais são impunes e a Justiça, vagarosa, trapalhona e incapaz, acaba sempre enganada ou talvez cúmplice.

Na Administração Pública, iniciada a reforma só no fim da legislatura, tudo fica na mesma.

A Economia começou mal para acabar pior. O ciclo económico pouco depende da actividade governamental, mas o Executivo sempre preferiu medidas mediáticas à verdadeira reforma económica. A razão profunda é a falta de confiança nos agentes e mercados, únicos capazes da transformação estrutural que gerará o próximo surto de crescimento.

Mas a prioridade assumida do Governo era orçamental, e aí os resultados parecem excelentes. Só que a redução do défice foi feita não com economia de gastos mas por tributação das poupanças privadas. Assim, o endividamento total do País não só não desceu mas subiu na conta-corrente e capitais dos 6,2% do PIB em 2004, para os 8,9% previstos para 2008.

Entretanto, a evolução decisiva desenrolou-se perante o alheamento distraído do Governo. Em 2007, pela primeira vez na História de Portugal, a taxa de mortalidade sem catástrofes subiu acima da de natalidade. A última vez que tal sucedera foi em 1918 devido à pneumónica. Apesar da ajuda dos imigrantes, o País encontra-se em vias de extinção. O Governo, que sofre as consequências na Saúde e na Educação, apenas trata aspectos laterais, na reforma da Segurança Social, talvez o feito mais importante da legislatura. No problema básico, os políticos pioraram a dinâmica com leis do aborto e do divórcio.

A atitude comum aos vários sectores é evidente. O Governo mostrou-se activo e reformador, disponível para enfrentar dificuldades e inaugurar uma nova fase no País. Este dinamismo reformista foi apoiado pelas populações, assustadas pela crise e ansiosas de novidade. Mas a ânsia reformadora não provinha de convicção profunda e facilmente cedia na contestação. Após declarações bombásticas seguiam-se adiamentos, compromissos, deslizes.

Mas a crise nacional é acima de tudo um problema de referências. Enquanto se evapora o prestígio de ministros, médicos, professores, juízes, polícias e funcionários, avoluma-se a sensação de perda de valores, sentido de serviço público, ética e dedicação.
Portugal definha na secura dos interesses.

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