Tradição anglo-americana
Expresso, 081125
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt
As diferenças entre a cultura política de língua inglesa e a continental são mais fundas do que as diferenças entre esquerda e direita, ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo
Apoiantes europeus de Obama mostram-se indignados quando lhes é dito que o Presidente eleito não poderá corresponder às expectativas que muitos europeus nele projectam. Julgam que se trata de pura guerrilha politiqueira. E respondem dizendo que esse é um argumento dos que não apoiaram Obama. É bem provável, no entanto, que estejam enganados.
As razões para a dissonância de expectativas são muito mais fundas do que esta ou aquela eleição presidencial. Elas decorrem de diferenças profundas entre a cultura política anglo-americana e a cultura política da Europa continental. Estas diferenças são mais importantes do que as diferenças entre esquerda e direita, ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo. É mesmo possível dizer que a esquerda está mais perto da direita no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita em diferentes culturas políticas.
Por outras palavras, as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição continental, sobretudo de inspiração francesa, devem-se menos a características peculiares da esquerda ou da direita em cada uma dessas tradições e muito mais a características comuns da esquerda e da direita em cada tradição.
Não é simples caracterizar essas diferenças entre culturas ou tradições políticas. No entanto, elas são conhecidas e discutidas há vários séculos, sobretudo entre os que admiravam o regime constitucional inglês, por contraste com o absolutismo continental, sobretudo francês e castelhano. Depois da revolução francesa de 1789, essas interrogações permaneceram, com ligeiras alterações: porque é que a Inglaterra mantinha um regime constitucional ordeiro, enquanto na Europa passáramos a ter a paixão pelo absolutismo popular e republicano, no lugar antes ocupado pelo absolutismo real?
Anthony Quinton, antigo reitor do Trinity College, em Oxford, exprimiu estas diferenças numa fórmula memorável. Disse ele que as ideias liberais de John Locke tinham produzido em Inglaterra, em 1688, uma revolução conservadora contra a inovação absolutista, e, na América em 1776, uma revolução relutante e moderada. Mas, quando essas ideias atravessaram o Canal da Mancha (a que eles chamam Canal Inglês), elas produziram na França de 1789 o ‘efeito do álcool em estômago vazio’.
Referindo-se ao mesmo tema, o historiador francês Élie Halévy, falou do “milagre da Inglaterra moderna”. E disse que esse milagre não residia em a Inglaterra ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções - industrial, económica, social, política cultural - sem recorrer à Revolução. Nas próximas semanas, voltarei a estas diferenças de fundo entre a cultura política de língua inglesa e a continental.
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt
As diferenças entre a cultura política de língua inglesa e a continental são mais fundas do que as diferenças entre esquerda e direita, ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo
Apoiantes europeus de Obama mostram-se indignados quando lhes é dito que o Presidente eleito não poderá corresponder às expectativas que muitos europeus nele projectam. Julgam que se trata de pura guerrilha politiqueira. E respondem dizendo que esse é um argumento dos que não apoiaram Obama. É bem provável, no entanto, que estejam enganados.
As razões para a dissonância de expectativas são muito mais fundas do que esta ou aquela eleição presidencial. Elas decorrem de diferenças profundas entre a cultura política anglo-americana e a cultura política da Europa continental. Estas diferenças são mais importantes do que as diferenças entre esquerda e direita, ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo. É mesmo possível dizer que a esquerda está mais perto da direita no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita em diferentes culturas políticas.
Por outras palavras, as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição continental, sobretudo de inspiração francesa, devem-se menos a características peculiares da esquerda ou da direita em cada uma dessas tradições e muito mais a características comuns da esquerda e da direita em cada tradição.
Não é simples caracterizar essas diferenças entre culturas ou tradições políticas. No entanto, elas são conhecidas e discutidas há vários séculos, sobretudo entre os que admiravam o regime constitucional inglês, por contraste com o absolutismo continental, sobretudo francês e castelhano. Depois da revolução francesa de 1789, essas interrogações permaneceram, com ligeiras alterações: porque é que a Inglaterra mantinha um regime constitucional ordeiro, enquanto na Europa passáramos a ter a paixão pelo absolutismo popular e republicano, no lugar antes ocupado pelo absolutismo real?
Anthony Quinton, antigo reitor do Trinity College, em Oxford, exprimiu estas diferenças numa fórmula memorável. Disse ele que as ideias liberais de John Locke tinham produzido em Inglaterra, em 1688, uma revolução conservadora contra a inovação absolutista, e, na América em 1776, uma revolução relutante e moderada. Mas, quando essas ideias atravessaram o Canal da Mancha (a que eles chamam Canal Inglês), elas produziram na França de 1789 o ‘efeito do álcool em estômago vazio’.
Referindo-se ao mesmo tema, o historiador francês Élie Halévy, falou do “milagre da Inglaterra moderna”. E disse que esse milagre não residia em a Inglaterra ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções - industrial, económica, social, política cultural - sem recorrer à Revolução. Nas próximas semanas, voltarei a estas diferenças de fundo entre a cultura política de língua inglesa e a continental.
Comentários