Redescoberta de Marx?

Expresso, 20081115
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt

A crítica de Marx à descentralização do ‘capitalismo’ é apenas uma variante da reacção à sociedade aberta do Ocidente, da nostalgia de uma sociedade fechada
Discute-se hoje a chamada ‘redescoberta de Marx’. A expressão parece-me equívoca, a mais do que um título.
Se nos situarmos no domínio da história das ideias políticas, Marx não precisa de ser redescoberto: já lá estava, nunca chegou a sair. Por outras palavras, Marx é um pensador por mérito próprio que nunca deixou de constar de qualquer séria história das ideias. Qual seria então o sentido de ‘redescobri-lo’ agora?
A menos que se queira dizer a redescoberta ‘política’ de Marx, por contraste com ‘académica’ ou ‘historiográfica’. Mas, nesse caso, a ‘redescoberta’ faz ainda menos sentido - ainda que por razões opostas. Politicamente, Marx exprime um arcaísmo reaccionário de resistência à sociedade aberta do mundo livre.
Através de opacas abstracções historicistas, insusceptíveis de teste, Marx convenceu muita gente de que o capitalismo era o modo de produção da burguesia, enquanto que o socialismo seria o modo de produção seguinte, o do proletariado. No primeiro, as decisões eram tomadas descentralizadamente, no segundo passariam a ser tomadas ‘socialmente’ - o que quer que isso queira realmente dizer, além do controlo central sobre as decisões das pessoas, das famílias e das instituições.
Ora, o ‘capitalismo’, nesse aspecto, não tem nada de novo - é aliás um termo equívoco, substituível com vantagem por economia de mercado, ou por economia livre. As decisões são tomadas descentralizadamente no Ocidente desde que este se reconhece como tal. A Magna Carta de 1215 recorda essas liberdades ancestrais. Limita o poder dos Governos a uma esfera superficial, não autorizada a redesenhar os modos de vida existentes. Consagra a liberdade religiosa, e protege-a da esfera governamental. Sublinha a liberdade de viajar ao estrangeiro. E o direito a um julgamento leal pelos pares de quem é acusado.
O ‘capitalismo’ limitou-se a tornar estas liberdades mais palpáveis para um número vastíssimo de pessoas - por via do espectacular aumento da produtividade e da espectacular redução dos custos de bens e serviços. Mas não foi o ‘capitalismo’ que inventou a liberdade ou a descentralização das decisões civis. Estas é que terão permitido a emergência do capitalismo, precisamente onde elas já existiam: no Ocidente.
A crítica de Marx à descentralização do ‘capitalismo’ é apenas uma variante da reacção à sociedade aberta do Ocidente, da nostalgia de uma sociedade fechada. É uma variante da aspiração autoritária à dominação por parte de um poder político ilimitado. Qual é a novidade dessa ‘redescoberta’? E que falta nos pode fazer?

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