O nosso fado

ALBERTO GONÇALVES | DN 2014.07.06

Mal se soube que o sr. Carlos do Carmo recebera o prémio de uma associação americana, surgiram as reacções. Uma figura alegórica que passou pela secretaria de Estado da "Cultura" e gosta de assinar petições em nome da dita correu a afirmar que o sr. Carlos do Carmo é "um símbolo de tradição e inovação no património do fado". Uma senhora que dirige um Museu do Fado falou em "distinção" justa e "inédita no panorama nacional". António Victorino d"Almeida lamentou que os artistas portugueses não sejam bem tratados por cá, e consolou-se por serem "devidamente reconhecidos internacionalmente". Um fadista avulso ficou contente porque é "amigo do Carlos" e porque o Carlos "cria imagens com as palavras que diz". O impagável António Costa não podia falhar os louvores: o prémio "é um novo e decisivo contributo" para a internacionalização do fado que "enche ainda mais de orgulho a cidade" de Lisboa. Por fim, o próprio sr. Carlos do Carmo contou que, no telefonema em que o informaram do prémio - "uma loucura" -, também foi informado de que é "um dos seis melhores cantores vivos do mundo".
Entre tanta excitação, ninguém se lembrou de explicar devagarinho que o prémio em questão é um Grammy, ou, mais específica e ainda mais embaraçosamente, um Grammy latino. Os Grammys normais, atribuídos pela indústria fonográfica dos EUA, possuem dezenas de categorias e celebram cen-tenas de músicos por ano, dos ocasionais bons aos atrozes em abundância. Os Grammys latinos, decididos por uma subdivisão daquela indústria, procedem de igual forma, com a agravante de que o seu universo está limitado aos países de língua espanhola e, não faço ideia a que título, portuguesa.
Se os Grammys a sério são justamente considerados os galardões menos relevantes desde o III Torneio de Futsal Juvenil do Bombarral, os Grammys latinos nem aos calcanhares do Bombarralense chegam. Em cada cerimónia, resmas de brasileiros, venezuelanos, dominicanos, colombianos e porto-riquenhos arrecadam distinções tão prestigiantes quanto a de Melhor Disco de Música Ranchera e Melhor Disco de Música Sertaneja. Prodígios como Enrique Iglésias, Shakira, Ricky Martin, Ivete Sangalo e o duo Chitãozinho & Xororó já mereceram a honra que agora coube ao sr. Carlos do Carmo.
Não se trata de avaliar as qualidades artísticas do homem: trata-se de perceber que os Grammys não atestam qualidade nenhuma. No máximo, atestam que inúmeros habitantes de um país periférico não têm nenhuma noção do ridículo e, na sua quase terna rusticidade, tomam as migalhas alheias por um banquete caseiro. Numa tentativa de elevar o grau de pureza da patetice, houve até quem procurasse uma polémica no facto de, ao contrário dos seus antecessores, Cavaco Silva não felicitar o sr. Carlos do Carmo. Um chefe de Estado congratular alguém por um Grammy? Isso sim, justificaria um prémio. Do Guiness Book, secção Rituais do Terceiro Mundo.

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