Não, a culpa não é do Costa
Helena Matos | Observador | 13/7/2014
A culpa das sondagens é da burguesia. É de o PS ser hoje um partido burguês que vê o mundo e os eleitores do interior da sua redoma de altos quadros da administração, dos institutos, das fundações
Dizem os títulos que "Seguro culpa Costa pela descida do PS nas sondagens". Mas não, a culpa não é de António Costa. Dizem outros títulos "Costa: sondagem revela necessidade de mudança" mas valha a verdade que a culpa também não é de Seguro. Apetece dizer que a culpa é do socialismo que enquanto ideologia assente na distribuição do dinheiro dos outros não encontra o seu caminho nestes tempos em que o dinheiro próprio acabou e o dos outros implica juros. Mas também isso não é suficiente enquanto explicação. Aliás não é impossivel construir um discurso socialista sobre justiça fiscal, estado social… Assim os socialistas o quisessem.
Mas voltemos à culpa ou, melhor dizendo, ao estado de estupefacção dos socialistas pelo facto de, caso as legislativas tivessem lugar agora, a coligação governamental sair vitoriosa. A culpa deste resultado é da burguesia. Não da burguesia que vota no PSD ou no CDS. Em primeiro lugar porque não é certo que a burguesia vote maioritariamente nesses dois partidos e sobretudo porque os votos da burguesia não são suficientes para ganhar eleições. Já a visão burguesa do mundo pode ser mais que suficiente para que se percam. E é esse o maior problema do PS e de muitos dos seus congéneres europeus: tornaram-se partidos burgueses.
Os socialistas vêem o mundo e os eleitores do interior da sua redoma de altos quadros da administração pública, dos institutos, das ordens, das fundações e dos observatórios e sobretudo vêem-no pelos olhos burgueses dos seus compagnons de route que fazem manifestos da cultura com as sucessivas personalidades em que a esquerda vê um D. Sebastião. A burguesia que tomou conta da esquerda em geral e dos socialistas em particular vem maioritariamente de um mundo estatal ou dependente dele em que o contribuinte paga o ordenado, o projecto, o sonho… e o logotipo.
Mais do que em qualquer outro campo ideológico a nomenclatura socialista vive num mundo confortável, civilizado e protegido, facto que em si mesmo nada tem de condenável mas que politicamente transforma os socialistas numa espécie de forasteiros no seu próprio país: arrancam as vestes pela escola pública mas não põem lá os filhos. Consideram-se pais do SNS mas vão tratar-se nos hospitais privados. Defendem mais impostos para financiar empresas públicas de transportes mas há anos que não andam de autocarro ou de comboio. E por isso não só falam do que não conhecem como prometem o que não podem.
Dir-se-á que os outros partidos fazem o mesmo. Mas do PCP e do BE não se espera que sejam governo, o que lhes permite que o seu discurso político seja uma espécie de ficção em causa própria. Quanto ao PSD e ao CDS estão por agora condenados a governar, o que para fúria das respectivas élites, cujo maior desejo era serem uma espécie de excêntricos num mundo naturalmente socialista, os obriga a um mínimo de senso. A culpa pela descida do PS nas sondagens não está portanto em quem os lidera ou aspira a liderar mas sobretudo no facto de os socialistas terem um discurso de oposição mas não de governo.
Burguesmente (só os burgueses sonham com revoluções!), muitos dos notáveis socialistas até sonharam com os subúrbios a arder. Alguns andaram a reler os textos sobre o Maio de 68. Os jornalistas inebriados davam conta de encontros fundadores, refundadores, dinamizadores e redinamizadores da esquerda, das esquerdas e das esquerdas das esquerdas. Os participantes chegavam a esses encontros em carros de serviço, fatos de bom corte e falavam de suicídios, país destruído e fome. Depois abraçavam-se, choravam os tempos em que tinham sido jovens e partiam apressados para o conforto das suas casas, de um bom restaurante ou de um outro seminário regiamente subsidiado para que eles se pronunciassem sobre a decadência do sistema. Em certos momentos tudo aquilo parecia um encontro de velhos escritores neo-realistas sem leitores mas com excesso de personagens e cada um deles a querer ser o narrador. Omnipotente, omnisciente e omnipresente.
A crise existiu e existe mas a esquerda em geral e os socialistas em particular falaram de uma crise que nunca existiu naqueles termos. Ou melhor dizendo, existiu mas há muitos anos. Mas como a esquerda portuguesa não só nunca se libertou de Salazar como vive obcecada com ele, por força entendeu que os portugueses estavam a regressar a padrões de vida semelhantes aos dos anos 30 do século passado (também poderia ser aos anos 20 mas isso não dá jeito porque no princípio dessa década ainda não existia o padrão-Salazar, logo a fome a repressão não são mencionáveis.)
À semelhança dos repórteres do New York Times que acharam adequado ilustrar a crise em Espanha com fotos onde se viam pessoas mexendo em caixotes de lixo, omitindo que a maior parte dos fotografados eram emigrantes que por sinal, e ao contrário do que acontece nos EUA, onde também podiam ser fotografados em situações similares, gozam de garantias legais e acesso a cuidados de saúde gratuitos, também os socialistas criaram uma ficção de país para os sound bytes que não coincide com o país real.
E assim não perceberam que esta crise estava a ser diferente. E curiosamente estava a ser diferente por causa de uma bandeira que o PS tanto reivindica: o estado social. A protecção social impediu que a crise tivesse os contornos desenhados nas aulas magnas da vida mas, ao apostarem na inevitabilidade de um segundo resgate e ao apresentarem um retrato de Portugal atravessado por hordas de esfomeados e candidatos ao suicídio, os socialistas ficaram reféns dos resultados necessariamente maus que o governo teria de apresentar. A este erro grosseiro de se colocar nas mãos do adversário, os socialistas juntaram outro: o de não apresentarem propostas credíveis àqueles que estavam e estão a pagar a crise com os seus ordenados que baixam, com os impostos crescentes, com a ameaça do desemprego e que por isso mesmo se tornaram muito mais cautelosos perante as promessas de crescimento e riqueza fácil.
Aprisionados no imaginário da Aula Magna e dos encontros das esquerdas, os socialistas esqueceram-se que o povo que antes não tinha nada a perder agora tem. Tem pensões, subsídios, apoios, reformas, medicamentos, ordenados, complementos… Logo o que está em causa não é Seguro, Passos ou Costa mas tão só quem garante que o edifício não se desmorona.
Ao entrarem em promessas miríficas de abrir serviços que encerraram, repor valores de pensões sem aumentar impostos e, por fim mas não por último, ao não serem capazes de assumir as suas responsabilidades nesta crise, que é o mesmo que dizer ao não terem sido capazes de se distanciar de Sócrates, os socialistas desbarataram aquele que era o seu verdadeiro trunfo: convencer os portugueses de que eles conseguiriam fazer melhor. Ao optarem por criticar cada medida como se ela fosse desnecessária e não errada os socialistas deixaram que seus críticos os apresentassem como tendo um único projecto: que Portugal regresse ao modo de vida que teve até 2012. O que politicamente é uma armadilha fatal enquanto por aí existirem os postes de abastecimento de carros eléctricos e o youtube mantiver disponível o vídeo de Sócrates a anunciar o pedido de ajuda externa.
E como não podia deixar de ser os socialistas iludiram-se com o facto de todos dizerem mal de Passos Coelho ou sobretudo de ninguém o defender. Mas esqueceram-se de duas coisas. Uma que é óbvia: só os eleitos de esquerda são susceptíveis de serem elogiados em Portugal. Os demais não só não se percebe como foram eleitos como não há alma nacional ou estrangeira que, para provar a sua cultura, a sua modernidade, enfim a sua cidadania, não se sinta na necessidade de os vituperar. (A propósito estão a imaginar o tumulto que iria agora na pátria caso o primeiro-ministro insultado pelos norte-americanos The Last Internationale no Alive não fosse Passos Coelho mas sim Sócrates ou outro qualquer notável socialista?) A segunda que não é menos óbvia e que em política é fundamental: o facto de não se dizer bem de um político não quer dizer que ele vai perder as eleições.
E nas próximas eleições legislativas o que está em causa é isto: quem garante que o dinheiro vem a tempo de pagar as pensões, as receitas dos medicamentos e o subsídio para mais não sei o quê? Dir-se-á que é pouco para programa de governo. Pois é. Mas a crise e o estado social geraram uma nova forma de estar: as franjas políticas que de modo algum coincidem com as sociais crescem em radicalismo e irrealismo. Ao centro vota-se em quem garantir que o sistema continua a funcionar. Por ironia do destino, Passos, que diziam neo-liberal, parece estar a conseguir convencer os portugueses de que ele garante melhor do que os socialistas a sobrevivência não apenas do estado social mas também de um estado constitucionalmente a caminho do socialismo.
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