Dissimulação
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.07.21
Grande paradoxo é o alheamento das gerações face aos dramas que as assolam. Celebrando o centenário da Grande Guerra, os 70 anos do desembarque na Normandia, os 40 do 25 de Abril e os 25 da queda do Muro de Berlim, espanta notar como eles apanharam de surpresa quem os viveu. Para o bem ou para o mal, demorou muito até se entender a real magnitude. As pessoas não eram tontas ou distraídas mas dirigiam atenções e esforços para outros aspectos, na época decisivos, hoje insignificantes.
A mesma tragédia patética repete-se agora, diante dos nossos olhos, pois a crise financeira portuguesa segue o mesmo roteiro. Daqui a 25, 70 ou cem anos haverá dificuldade em entender como nos enredámos em pequenas tricas e ninharias, enquanto o problema crescia em silêncio. Nem é preciso esperar muito, pois é já evidente a dissimulação que nos trouxe ao resgate e, agora que ele acaba, vem surgindo a dissimulação que este incluiu.
Está documentado o alheamento dos dirigentes que, de 2008 a 2011, negaram a existência de problemas financeiros graves, confiando em analgésicos para tratar um cancro. É hoje inacreditável revisitar esses meses e os intensos debates que os ocupavam, sempre ociosos. O País só acordou para a dimensão da crise na noite de 6 de Abril de 2011, reparando na enorme dívida, acumulada à socapa. A euforia a crédito fora demorada e envolvera todos os extractos sociais, mas passara despercebida. Agora eram inevitáveis longos e penosos esforços de ajustamento.
A austeridade apertou severamente o País. O esforço foi grande e teve resultados positivos. Muita da nossa economia reestruturou, algumas reformas institucionais e regulamentares foram feitas, e conseguiram-se melhorias no Orçamento. Mas muito ficou por fazer. Terminando o programa de ajustamento, quando os tolos dão suspiros de alívio, surgem as verdades que se omitiram nestes anos. Apesar da dureza, manteve-se uma dissimulação, que agora desponta, e rebentará nos próximos tempos.
A austeridade foi forte e vasta, mas deixou de lado dois grupos principais. Primeiro, sectores públicos protegidos. Seja porque o Governo não lhes quis ou pode tocar ou porque o Tribunal Constitucional os defendeu, largos extractos tiveram as suas receitas resguardadas no meio da crise, à custa de impostos, que agravavam a crise. O segundo grupo é o "capitalismo de compadres", as elites sectoriais, também próximas do Estado, que se enredaram em favores e ilusões para esconder erros.
Não é difícil reconhecer os contornos da fantasia que manteve na sombra esses sectores da realidade, desviando a atenção para detalhes secundários. Fingia-se que o problema se limitava à dívida pública, que bastava uma reforma de políticas. Pior, o sofrimento e a confusão fez brotar os demagogos, acusando, barafustando e apregoando soluções fáceis. A discussão foi repetidamente desviada para a defesa de direitos adquiridos e falácias constitucionais. Como se a retórica e as queixas fizessem desaparecer o peso e os sacrifícios.
Agora a crise do GES relembra que a dívida privada é muito maior do que a pública. É inacreditável a surpresa, provavelmente genuína, apesar de os factos serem conhecidos há muito. Não é por falta de informação, diagnóstico ou terapêutica, nem sequer por ter falhado o tratamento. Os sinais que agora surgem têm simplesmente que ver com aqueles sectores que nos últimos anos fingiram que estava tudo bem. Pode demorar, mas a realidade acaba por surgir. Como já se vê, esses serão os protagonistas da próxima fase da crise.
Quando os nossos netos lembrarem os escombros da nossa era, não conseguirão compreender como foi possível ignorarmos o mal, enquanto nos entretínhamos com tricas menores. À distância, bloqueios ao encerramento de serviços e cortes de despesas, minudências do Tribunal Constitucional, embates de personalidades no Governo e oposição, propostas de repúdio ou reestruturação da dívida parecerão tontos e mesquinhos a quem já conhece o resultado. Mas cada geração vive alheada dos grandes dramas que a assolam..
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