Já se pode dizer bem de Passos Coelho?

Maria João Avillez | Observador | 2014.07.02
Cai mal dizer "bem" de Passos Coelho: os bem pensantes enervam-se e o ar do tempo desaconselha. A má fé vigente tomará estas minhas pobres palavras como um despropósito que destoa do coro dos dias.
Faz hoje um ano o governo foi enterrado. Tal como a Torre de Pisa, todos os mundos – o político e os outros – se inclinavam só para um lado: naquele belo dia de verão, o Executivo tinha acabado, a maioria tinha-se desfeito.
Gaspar saíra na véspera, deixando carta e menos de 24 horas depois, Portas, sem aviso prévio e irrevogavelmente, imitou-lhe o gesto. Deixando comunicado.
Havia meses que – relembremo-lo – Gaspar acordara com Passos Coelho o nome da sua sucessora e organizadamente foi isso que ocorreu: o Governo aprovara, o PM propôs o nome de Maria Luis, o Presidente da Republica aceitou-o, Vitor Gaspar saira a 1 de Julho, a posse seria a 2.
O Presidente, apanhado no princípio da tarde desse 2 de Julho em cerimónias oficiais que o impediam de atender o telemóvel, voltou nesse dia a ser apanhado – mas pela surpresa. Não gostou, nem esqueceu: os estados de alma de Paulo Portas mergulharam Cavaco Silva num cenário de (quase) irracionalidade politica, deixando-o a vogar numa "impossivel" situação de incerteza, o que em politica é dizer o pior.
Não fora Passos Coelho e teria desabado a tempestade perfeita. Não desabou, apesar da desconfiança e dos presságios, das apostas e dos vaticínios de fim de ciclo. O primeiro-ministro não deixou. Sem perder a cabeça ou a bússula, sem lhe ocorrer aquele tique nosso conhecido do "abalar", sem cair na aflição ou no desnorte, tomou em mãos a ocorrência e ao fazê-lo impediu – entre outras coisas – um segundo resgate. Com as fatais – inimagináveris? – consequências que daí adviriam.
Passos mostrou estofo e sentido da política. E sentido de Estado, claro está. Não é qualquer um que, naquele incêndio, domestica os acontecimentos e os "ocupa" politicamente, elegendo um desfecho a seu favor. De caminho – e eis o que também não é de somenos – mostrou quem mandava na coligação e quem era o chefe da maioria. Já fizera o mesmo aquando da 7ª avaliação da Troika, mas fizera-o longe de nós, nos bastidores do país. O dia 2 de Julho ditou-lhe o palco e colocou-o sob os holofotes das instituições. Ao final do dia as oposições á esquerda e os opositores dentro do PSD ainda esperavam em surdina que ele fosse a Belém com uma corda ao pescoço invocar "falta de condições", mas o primeiro-ministro nunca – que me lembre – se afogou no mar das oposições nem se impressionou por aí além com barões fora de jogo.
Depois, claro, choveram "ah" e "oh" de espanto face ao "patriotismo" de Passos Coelho. Como se ele tivesse nascido para a política nesse 2 de Julho ou a sua liderança na acção e actuação do Governo (pesem embora erros e excessos que tantas vezes critiquei) não relevassem justamente dessa mesma endurance e resiliência.
(Agora, há dias, em tom menor é certo, também houve umas golfadazinhas de admiração por Pedro Passos Coelho ter vetado a entrega de mais ajudas financeiras ao BES. Voltei a espantar-me: piores cegos são os que nunca querem ver? Mesmo a um palmo de distancia?)
Cai mal dizer "bem" de Passos Coelho: os bem pensantes enervam-se e o ar do tempo desaconselha a bondade. A má fé vigente tomará estas minhas pobres palavras como um despropósito que destoa do coro dos dias e da pretensão intelectual com que o primeiro-ministro é habitualmente radiografado. Paciência. Já se eu gesticulasse a favor de António Costa – pessoa que me é muito simpática, de resto – seria bem vinda e o mundo seria perfeito.
Mas se há algo que tenha aprendido é que esta coisa dos "dois pesos e duas medidas" é uma regra sem excepção: à esquerda tudo é permitido, desde o ter licença de existir, direito de cidadania, poder de ditar das regras, distribuir voz. A direita tem sempre de (lhe?) pedir licença.
E pensar que já passaram 40 anos disto.
PS: Sobre o segundo resgate a que aludi acima, ocorreu-me agora de repente relembrar alguns passos de uma saga que nunca existiu mas que durante meses e meses nos foi sempre vendida como uma certeza irrefutável: o "segundo resgate" foi anunciado em todas as televisões sem excepção; previsto por todos os jornais – num deles com data, fonte e primeira página; brandido nas rádios; assustadoramente desejado por jornalistas e comentadores; usado pelas oposições como um trunfo contra o governo; falado nas elites e nos meios bem informados (?) como um mero fait divers.
Até hoje não houve segundo resgate (e ao primeiro dispensou-se a última fatia) Mas também não houve mais nada: ninguém se importou com o que disse, avisou, ameaçou, prometeu, garantiu, jurou. Ninguém veio dizer "enganei-me". Ao menos, "precipitei-me". Não sei se o ressentimento, a fragamentação, a imbecilidade, toldam os espíritos ou induzem a cegueira. Talvez induzam. E, por outro lado, ninguém tirou consequência alguma – consequência política seria talvez pedir muito… – sobre o facto de não ter havido a tão anunciada segunda provação. O que lá vai, lá vai. Gente pouco séria.

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