Da Lua à Terra
Paulo Tunhas, Observador 30/7/2014, 22:11
Tenho um grande cepticismo em relação ao que se vê nas televisões no que respeita ao número de crianças e mulheres mortas A 20 de Julho de 1969, os astronautas americanos Neil Armstrong e Buzz Aldrin, membros da Apolo 11, caminharam pela primeira vez na Lua (o terceiro astronauta, Michael Collins, permaneceu no módulo de comando, na órbita lunar). Houve depois doze outros homens a caminharem na Lua, os astronautas de outras missões Apolo, a última em 1972. Mas, como é óbvio, nenhuma delas teve a capacidade de maravilhamento da Apolo 11. Creio que qualquer pessoa que tenha idade para se lembrar da coisa concordará comigo.
Durante muito tempo perguntei-me porque é que nenhuma grande obra de arte fora alguma vez feita inspirada pelo acontecimento. Até que percebi que a pergunta era estúpida. A alunagem da Apolo 11 era, à sua maneira, ela própria uma obra de arte, dotada de uma beleza e (vá lá, arrisque-se uma palavra que deve ser utilizada com cuidado) uma sublimidade impossíveis de traduzir por meio da pintura, da música, da literatura ou do cinema. Claro que tudo se integrava no contexto da competição entre os Estados Unidos e a União Soviética, mas isso não afecta minimamente o lado absolutamente gratuito, e não espúrio, da primeira alunagem, nem o carácter único daquelas imagens dos astronautas e da paisagem lunar. Elas são, por assim dizer, um mundo em si, um mundo que permanecerá sempre, existindo por si próprio, à margem de tudo o resto, um mundo do qual nada se pode deduzir, porque em si tem tudo.
É, é claro, uma maneira de falar. Na nossa querida região sublunar, deduziram-se imensas coisas. Limito-me a uma, que à data constituiu para um miúdo de nove anos uma revelação, e com a qual, durante a vida, me confrontei vezes sem conta: as teorias da conspiração. Logo um dia ou dois depois do passeio lunar dos astronautas, um jardineiro que ia a casa dos meus pais, certamente procurando esclarecer-me da complexidade das coisas da vida, informou-me que tudo aquilo tinha sido filmado num deserto qualquer e que era uma intrujice dos americanos. Os americanos, como se sabe, não são gente de confiança. Pela mesma altura, era muito audível a opinião segundo a qual se as estações do ano não apresentavam a regularidade climatérica do passado – como se vê, tudo vem de trás – isso devia-se, em primeiro lugar, aos satélites com que o danado do Tio Sam atafulhava o céu. De qualquer modo, a teoria do jardineiro acompanhou-me, em versões sortidas, durante a vida. Um aluno maluco, há uns dez anos, informou-me, com detalhes exasperantemente técnicos, que a coisa tinha sido feita numa região qualquer da Islândia. E, há bem menos tempo, a actriz francesa Marion Cotillard decretou que, na sua modesta opinião, tudo tinha sido encenado em Hollywood.
As teorias da conspiração são fascinantes, e, ao contrário da ida à Lua, são um mundo aberto, florescente, e susceptível de se investir em qualquer classe de objectos. Os mecanismos mentais que estão em jogo aqui são relativamente fáceis de determinar.
Tudo começa com a desconfiança. Desconfia-se dos relatos correntes de determinados acontecimentos, que se supõem concebidos por entidades mais ou menos invisíveis e invariavelmente maléficas, com o fito de ocultar a verdade e com uma intenção bem determinada: a aquisição de um poder absoluto. Note-se que não se deve conceber tal atitude de suspeita com qualquer forma de cepticismo. É bem o contrário.
E é bem o contrário porque a crença não perde nada da sua energia quando se transfere para uma verdade supostamente ocultada. Ao invés, o sentimento de estar na posse de algo que a maioria das pessoas ignora comporta, além de um indiscutível benefício narcísico (é bom ser o mais esperto da rua), o sentimento de pertencer a uma comunidade, a comunidade daqueles que também estão por dentro do segredo. Pertencer a uma comunidade é importante: é preciso que haja gente noutras ruas que nos acompanhe (impede que passemos por maluquinhos). E fortifica a crença na verdade daquilo que a maioria ignora.
Tanto mais que tudo isto vem acompanhado de um intenso investimento afectivo. Os que supostamente nos procuram ocultar a verdade (americanos e judeus, por exemplo) são objecto de ódio incontido e persistente. O afecto, no limite o afecto patológico, fortifica também ele a crença.
Qual a vantagem desta atitude, e eventualmente a sua mais profunda razão de ser? É ela tornar o mundo – uma coisa fragmentada, onde reina a contingência e o caos conflitual das vontades individuais – algo de perfeitamente inteligível e ordenado. Tudo adquire uma natureza integralmente coerente. A mínima acção passa a poder ser explicada, sem resto de dúvida, a partir de um esquema assim.
Partindo de uma desconfiança de base chega-se deste modo a uma certeza absoluta. Daí vêm os fanatismos sortidos que nos acompanham no nosso mundo sublunar e que bem nos estragam a vida. O resultado da crença em teorias conspiratórias é portanto o avesso do cepticismo que nos é muito aconselhável no dia a dia.
Esta distinção entre o cepticismo e a desconfiança conspiratória (chamemos-lhe assim) é fundamental. Um exemplo. Não tenho a mínima dúvida, é claro, que muitos civis – entre os quais mulheres e crianças – tenham morrido, do lado palestiniano, na actual guerra entre Israel e o Hamas. Mais: não tenho a menor dúvida que muitos tenham morrido sem ser por causa da bem conhecida artimanha do Hamas de colocar propositadamente armas e combatentes em lugares onde abundam civis, que são impedidos de abandonar tais lugares. Mas isso não impede um grande cepticismo em relação ao que se vê nos canais de televisão, nacionais e internacionais, no que diz respeito ao número de crianças e mulheres mortas e à mais do que miraculosa ausência de mortos entre combatentes do Hamas.
Porquê? Em primeiro lugar, porque as forças de Israel fazem todo o possível para reduzir ao mínimo a morte de civis (um acto de crença que se encontra bem justificado pela história passada). Depois, porque há um longo historial de atestada manipulação dos dados pelos palestinianos nestas matérias (Jenin, em 2002, é porventura o caso mais célebre). Finalmente, porque as próprias imagens televisivas (e os propósitos que as acompanham) são esclarecedoras no capítulo. Muito é, obviamente, encenação. Isso é particularmente nítido se formos directamente à Al Jazeera, que apresenta as coisas mais militantemente do ponto de vista do Hamas do que as outras estações televisivas (embora estas também, quase sem excepção, em grau menor o façam). Apesar de a Al Jazeera – financiada pelo Qatar, tal como o Hamas e os seus túneis – ser muito bem feita, a própria militância induz à exposição dos fios grossos com que a propaganda é feita.
A dúvida céptica nada tem a ver com a crença conspirativa segundo a qual obscuros poderes congeminam o nosso logro e a nossa perda, à maneira dos Protocolos dos Sábios do Sião (não por acidente, um texto muito querido ao Hamas). É, como disse, o seu exacto avesso. E o mundo à nossa volta seria bem melhor com menos patologia conspiratória e com mais cepticismo. Infelizmente a vontade de acreditar, mesmo nas ideias mais absurdas, leva normalmente a melhor. E quando nos faz sentir inteligentes e dá lugar a manifestações de sensibilidade demonstrativa, é imbatível.
Que saudade da Lua!
PS. O Qatar, lembrou-me um amigo, vai organizar o Mundial de futebol de 2022. Não me parece muito perigoso: não devem permitir que por lá se abram túneis atrás das balizas para raptar ou matar jogadores de equipas mal-amadas no lugar.
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