Dormir acordado
Quando eu era novo não conseguia dormir de tanto desejar o dia seguinte – a começar pela vinda do Pai Natal.
Pouco mais velho, já sabendo da verdade sobre o Pai Natal (tendo marcado umas cenouras, alegadamente comidas pelas renas do benemérito, que reapareceram magicamente, extraídas dos aparelhos digestivos das ditas), dei comigo a não conseguir dormir por não querer despedir-me do dia maravilhoso que ainda não tinha acabado de viver.
Os meus pais – se calhar para terem uma nesga de vida romântica – deitavam-nos muito cedo. No Verão, então, era dramático, no sentido mais teatral que tem.
Não adormecíamos. Ficávamos acordados e contávamos histórias sobre a nossa liberdade e as nossas aventuras mal pudéssemos fugir dali. Crescendo. Crescendo era a maneira mais cobarde e conveniente. Foi essa que escolhemos.
Apesar de ter conseguido, muito recentemente, interromper vinte anos de comprimidos de dormir, com a ajuda, sempre subtil, de dois bons médicos, ainda passo algumas, cada vez "mais poucas", noites, preocupado com os dias que se seguem.
Dantes era por antecipação de uma felicidade. Agora é por antecipação de um dever, como escrever esta crónica, tendo-me deitado antes de a ter escrito.
O que me acorda agora, quando deveria estar a dormir, é a sensação ansiosa que amanhã, por muito má que seja a coisa escrita que eu consiga produzir, ela é esperada de mim.
Já não consigo esquecer-me e não durmo. E fico acordado por causa disso.
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