A natalidade e a ornitologia

Helena Matos | Observador | 20/7/2014

Com cada filho transformado em atestado de que somos cultos, inteligentes, tolerantes, emocionalmente equilibrados e sei lá que mais não admira que se complexifique e tema cada vez mais a maternidade
Primeiro eram as cegonhas. Por mais improvável que tal possa parecer, houve um tempo em que a versão oficial para o aparecimento das crianças, nomeadamente se a criança em causa fosse um irmão mais novo, estava no bico das cegonhas.
Perante tal explicação qualquer criancinha minimamente clarividente objectava de imediato que ser transportado no bico da cegonha era um grande risco mas os adultos que se afanavam em torno dos bebés e não deixavam ninguém mais tocar-lhes, particularmente os irmãos mais velhos, pareciam indiferentes ao facto de o início das nossa vidas ter começado aos tombos no bico de uma cegonha que também ninguém explicava como não nos trocavam na hora das entregas, não nos magoavam com os seus afiados bicos e de que forma nos alimentavam durante tal agónico percurso.
Nos tempos em que as cegonhas traziam os bebés, explicação que estava restrita aos meios urbanos dos anos 50 e 60 do século passado (nos meios rurais, as crianças rodeadas de animais e irmãos por todos os lados esta ficção ornitológica causava no mínimo um sorriso escarninho) os casais começavam a contentar-se com o cavalinho: em 1960, cada mulher portuguesa tinha em média três filhos. Em 1979 esse valor já estava muito próximo dos dois filhos por mulher. Dez anos depois, em 1989, o Índice Sintético de Fecundidade, ou seja o número médio de crianças vivas nascidas por mulher em idade fértil (dos 15 aos 49 anos de idade), era de 1,58.
Dirão algumas boas almas (e diziam os nossos argutos pais, fartíssimos de tanta pergunta sobre o tráfego internacional de bebés no bico das cegonhas) que tal se deveu a uma preocupação com o cansaço das cegonhas. Fosse por isso ou talvez mais prosaicamente porque a memória recente da pobreza vigente nas famílias numerosas, donde provinham muitos dos pais dessa geração, a par da divulgação da pílula e da adopção de um estilo de vida mais urbano, os levava a ver na redução do número de filhos a garantia de uma vida melhor, a verdade é que foi certamente por uma razão poderosa, pois embora a natalidade continuasse a descer nas décadas seguintes nunca mais o faria de forma tão acentuada.
Podia presumir-se que a fúria científica traduzida em ilustrações, fotos e descrições detalhadas subordinadas ao tema "Como se fazem os bebés", que didacticamente sucedeu ao tempo obscurantista das cegonhas que traziam os bebés de Paris (cegonhas essas que entretanto tinham deixado de ser exploradas no transporte aéreo dos bebés e se haviam tornado uma espécie ameaçada de extinção), nos tinham liberto para sempre desta bizarra ligação ente os bebés humanos e essa classe de animais vertebrados, bípedes, endotérmicos, ovíparos mais conhecida como aves. Mas não. Rapidamente entrámos na bem mais constrangedora época em que entre os filhos dos humanos e os pintos de aviário não existe qualquer diferença: se não nascem em número suficiente é porque não se forneceu q.b. às suas mães. Luz, calor e ração no que aos pintos respeita. Abonos e apoios no que aos filhos dos sapiens sapiens concerne.
Depois de décadas em que falar de natalidade implicava ser-se de imediato catalogado como ultramontano – aliás a grande preocupação mundial até há algum tempo era sim com a explosão demográfica e não com a baixa da natalidade, ou já esquecemos os apocalipses anunciados nesta matéria pelos consensualmente sábios do Clube de Roma? – a demografia tornou-se um assunto política e mediaticamente urgente mas tão só e apenas na medida em que passou a ser apresentada como um capítulo até agora desconhecido do "Capital" de Marx, e que resumidamente se traduz nisto: não nascem crianças porque não existem apoios económicos às famílias para que se reproduzam.
Não sei o que é mais constrangedor, se esta concepção mercantil das decisões mais íntimas e sérias da nossa vida, se a profunda ignorância que ela, na sua visão redutora, revela da História e do mundo e de nós mesmos enquanto espécie: poucos países da Europa terão tantas razões quanto a Alemanha para confiar no futuro e contudo, em 2013, os alemães e os gregos tiveram a mesma taxa bruta de natalidade. Isto para já não falar dos abastados suíços que, não fossem os emigrantes a assegurar um quarto dos nascimentos naquele paraíso do pleno emprego, estariam candidatos a transformar-se na versão humana dos pandas que nem nas condições ideais se reproduzem (segundos os biólogos que os assessoram e estimulam nessas vãs tentativas já não vão lá nem com vídeos pornográficos, seja isso o que for no que aos pandas respeita).
O cúmulo desta concepção da gravidez como resultado de programas de apoio e não da decisão de duas pessoas é apresentar como ideal a funcionalização das mães: ou seja, assegurar uma espécie de salário às mães para que estas fiquem em casa até os filhos fazerem três anos. Ou quiçá mais.
Desfeitas as ilusões do PREC de transformar os actores e os escritores em assalariados estatais temos agora as mães candidatas a esse lugar. Os promotores de tais ideias, para os quais o mundo ideal será aquele em que, por uma razão ou por outra, todos dependamos do Estado, não se interrogam sobre a sustentabilidade desta medida, muito menos sobre a sua eficácia – nos países em que existe o resultado não foi o esperado – e muito menos sobre o impacto que tal pode ter na vida das mulheres e na sua decisão de terem ou não filhos: o facto de as mulheres que têm filhos pequenos trabalharem, colocando os seus filhos em creches, leva a que sejam consideradas más mães e como tal muitas mulheres optam de facto por não ter filhos, o que demograficamente acaba por ter um efeito perverso.
E por fim mas não por último, para muitas mulheres a maternidade não só não é incompatível com o exercício de uma profissão como não se sentiriam de facto melhores mães ficando em casa: jamais esquecerei o dia em que umas alemãs me consideraram má mãe quando perceberam que eu, que estava em reportagem na Alemanha, tinha filhos pequenos. Não creio que tenham ficado satisfeitas com a minha explicação de que para mim era bem mais importante, uma vez regressada a Portugal, abraçar, beijar, zangar-me e tocar nos meus filhos como elas nunca faziam e sobretudo nunca os deixar sossegadinhos e sozinhos nos carrinhos à porta das lojas, como é usual nesses alegados paraísos das mães em casa. Admito a diferença de opiniões mas não a superioridade moral de nenhuma das opções. E temos de admitir que esta muito actual e mediaticamente popular concepção da maternidade como algo de transcendente, incompatível com o quotidiano ou com o exercício de uma profissão tornou em muitos casos algo que era natural – ter filhos – numa decisão quase excêntrica.
Ser pai e sobretudo ser mãe deixou de ser simplesmente ter filhos – e o simplesmente é uma forma de dizer como bem sabe quem os teve – para se transformar num preenchimento de requisitos materiais que abarcam desde os mais variados e estranhos objectos até inscrições em escolas de sucesso ainda a criança não foi gerada, passando invariavelmente pela obsessão de garantir que haverá sempre dinheiro para garantir tudo o que ela venha a entender precisar. É uma espécie de corrida para se provar a perfeição: a gravidez, o parto, o dormir, o acordar, a alimentação, a entrada na escola… transformaram-se em momentos psicológicos que têm atrás bibliotecas de opiniões tão dogmáticas quanto contraditórias mas sempre coincidentes num aspecto: caso tudo seja feito como eles indicam a criança em questão tornar-se-á no mais perfeito, feliz e bem-sucedido dos seres.
Com cada filho transformado num atestado de que somos cultos, inteligentes, informados, tolerantes, emocionalmente equilibrados e sei lá que mais não só não admira que cada vez se complexifique e receie mais a maternidade, como também não surpreende que o país esteja cheio de adultos que fazem de conta que são jovens, adiando o mais possível o momento em que serão pais e mães – afinal o ideal de vida que lhes foi transmitido é que não só tudo lhes é devido, como que ter responsabilidades é mau – e de uns adolescentes filhos únicos de pais que outrora seriam definidos como velhos. (Ainda se lembram como na década de 70, para explicar a falta de jeito para os jogos, o número anormal de abafos, o peso a mais ou o carácter enfermiço de algum colega logo alguém mais informado explicava que tudo aquilo se devia ao facto de ser filho único ou os pais já serem velhos, sendo que o conceito de pais velhos na época corresponde directamente ao de pais jovens de hoje?)
Versões ocidentais e populares do último imperador dos chineses, estas gerações, cujas mães lhes carregam com a mala quando os vão buscar à escola não vão eles cansar-se, viram cada brincadeira ser transformada numa actividade didáctica e a sexualidade tornar-se numa disciplina escolar devidamente supervisionada Essas crianças para quem a a realidade é sempre um trauma e o virtual um mundo a explorar, são o outro reflexo da baixa da natalidade e não certamente o seu lado menos preocupante.
Moral da história: as cegonhas têm razão. Não no que ao transporte de crianças concerne, mas sim na saudável determinação e optimismo com que se adaptaram às mudanças do mundo e trocaram as árvores e os campanários das igrejas pelas torres de electricidade para fazer os seus ninhos. Ou aprendemos com elas ou acabaremos como os pandas.

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