Verdade verdadeira e verdade assim-assim

Saragoça da Matta, ionline 2014.06.27

Só consciências distorcidas podem adormecer serenamente sabedoras de que nem sequer se quis, efectivamente, descobrir a verdade
É difícil explicar a um não iniciado nos ofícios do direito que a descoberta da verdade pode ser irrelevante para a justiça. Mas creiam, leitores não juristas, que é assim.
E de tal modo assim é que, logo nos manuais de Direito, se distingue a verdade material da verdade formal. Precisamente porque "a verdade", supostamente, é aquela que se crisma de "material". Então se a verdade verdadeira é a verdade material, para que servirá a verdade dita "formal"? Serve para apaziguar as nossas humanas consciências, isto é, nossas dos oficiantes do direito, que sabedores de que a verdade verdadinha não é sempre (ou melhor, não será quase nunca) descobrível pelos nossos limitados recursos cognitivos, nem pelos constrangimentos de civilidade que a lei impõe aos investigadores, temos de dar um nome àquilo que nos processos se descobre como sendo verdadeiro.
Por isso mais vale assumir que, as mais das vezes, as decisões judiciais são meros exercícios teóricos de aplicação das regras previstas no direito àquilo que se conseguiu apurar nos processos, seja mesmo verdade seja apenas a verdade possível no processo. Daí ter-se começado a falar em verdade formal: a que formalmente fica a constar do processo como verdade, por mais longe que esteja do que efectivamente aconteceu.
E esta situação é inelutável: sempre assim foi e sempre assim será. É da natureza humana!
Mas se sabemos que a verdade obtida nos processos pode ser, e por regra é, apenas formal, para quê darmo-nos ao trabalho de tentar ser rigorosos na investigação da mesma? Porque uma consciência sã pode apaziguar-se com a constatação de que não se conseguiu atingir os 100% da verdade, mas se tentou fazê-lo. Mas só consciências distorcidas podem adormecer serenamente sabedoras de que nem sequer se quis efectivamente descobrir a verdade.
Os problemas levantados por esta dicotomia entre verdade verdadeira e verdade assim-assim não se ficam por aqui. Bem ao invés. A dicotomia afecta radicalmente a consciência de justiça, de dever ser, de equilíbrio e paz social. É que, se o direito serve, no final de tudo, para pacificar a sociedade, obviamente todas as decisões judiciais que assentem excessivamente em verdades formais acabarão por não pacificar coisíssima nenhuma.
Daí que o direito, por imperativo de justiça, distinga as exigências de "busca" de verdade nos processos mais graves, como é o caso da justiça criminal, das dos processos menos graves, todos os demais. Assim que seja imposto, pelos princípios gerais do direito, pelas bases da justiça-valor em que assenta o sistema judicial e pelas boas e sãs consciências de quem pugna pela vigência da recta ratio , que nenhuma decisão criminal possa condenar seja quem for sem ser com base no máximo de verdade material definitiva e claramente apurada.
Infelizmente, deparamos demasiadas vezes com decisões em que logo de início se desistiu da procura da verdade material. Em que qualquer semelhança entre a verdade material e a verdade formal é pura coincidência. E, o que é pior que tudo, em que todos os oficiantes sabem disso.
São casos em que se decide para o público, com razão, sem razão, contra a razão. Porque sim!

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