Discurso na cerimónia de Homenagem aos Combatentes - 10 de Junho de 2014
Palavras do Senhor Professor Doutor Henrique Leitão na Cerimónia de Homenagem aos Combatentes em 10 de Junho de 2014
Portugueses – Combatentes de Portugal:
Entendeu a Comissão Executiva para a Homenagem Nacional aos Combatentes convidar este ano, como orador, para proferir umas breves palavras, um professor universitário, que se dedica à história da ciência, que não foi combatente, e que certamente não passou pelas durezas por que muitos de vós passaram.
A oportunidade de me dirigir a esta assistência e ao que ela representa é seguramente uma das maiores distinções que recebi na minha vida. Estou aqui, pois, antes de mais nada, para prestar o meu respeito e a minha homenagem a todos os combatentes, e para, com todos eles, lembrar muito em especial os que tombaram. De certa maneira estou aqui para dar voz a tantos da minha geração que, tendo vivido em circunstâncias muito diferentes das vossas, olham com curiosidade, com admiração e, sobretudo, com imenso respeito, para todos vós.
Ao começar estas breves palavras vale sempre a pena relembrar algo que é para todos nós uma evidência: não viemos aqui para celebrar nem uma ideologia nem uma política. Não viemos nem para comemorar vitórias nem para lamentar derrotas. Não viemos para julgar. Também não viemos apenas para relembrar o passado, como algo frio e distante que se examina com interesse vago ou apenas com saudade.
Estamos aqui neste Dia de Portugal para relembrar e homenagear, talvez com comoção, mas também e sobretudo com alegria, a grandeza dos que lutaram por Portugal, e para comemorar, com esperança, este amor pela nossa terra e pelas suas gentes. A passagem dos anos torna este Encontro Nacional cada vez mais importante e mais significativo. O tempo pode esbater as circunstâncias concretas dos feitos que recordamos, mas realça e torna mais nítidos o esforço e a entrega dos combatentes.
Pobre de um país que não olhe com respeito e admiração para aqueles que o serviram nas situações mais duras e mais extremas. Pobre de um país que não lembre aqueles que por ele deram tudo. Pobre de um país que não recorde os seus mortos. A História de uma nação não é só feita de conquistas materiais – sejam elas de que tipo forem. A história é feita também de memória e de exemplos. Exemplos que o passado projecta no presente e nos esclarecem sobre quem somos. É por isso que o vosso esforço e o vosso exemplo nunca serão esquecidos. Não fui combatente, mas por razões familiares e de amizade, conheci e privei ao longo dos anos com muitos que o foram. Gostava de dizer o que aprendi com eles, ou seja, o que aprendi convosco.
Aprendi convosco que os verdadeiros soldados lutam não porque odeiam o que têm diante, mas porque amam o que deixaram em casa.
Aprendi que das missões em terras distantes nasce o encanto por essas terras e pelos seus habitantes.
Aprendi que o amor ao próprio país não é um sentimento que fecha, mas um abraço que se alarga a outros povos.
Aprendi que nas provações mais duras se forjam amizades que não distinguem nem raças, nem credos, nem origens sociais, nem níveis de instrução.
Aprendi o que é o respeito e a admiração pelos que foram adversários e antigos inimigos.
Aprendi que quem mais preza e deseja a paz é quem já teve que combater.
Estas são lições que têm de ser recordadas às novas gerações – mas são lições que ninguém pode dar melhor do que vós. O vosso exemplo e a vossa presença são hoje tão importantes como no dia em que fostes chamados.
Olhar para esta assistência é também, de certa maneira, olhar para a história de Portugal. Os combatentes do Ultramar são os mais recentes representantes da história singular que o nosso país teve. A história do nosso país enche de surpresa e admiração a quem a estuda: Uma nação pequena, de escassa população e recursos limitados, veio a desempenhar um papel singular na história da Europa e do Mundo. Não foi uma história perfeita de gente irrepreensível (histórias assim não existem), mas só um olhar de imenso cinismo ficaria indiferente perante a grandeza do que foi feito.
Desde muito cedo os habitantes deste pequeno território continental reclamaram independência e afirmaram a sua diferença. Depois, os portugueses foram o primeiro povo europeu a navegar em longa distância nos oceanos de forma estável e habitual, fazendo o que antes deles nenhum outro povo da Europa se atrevera a fazer. Foram o povo que transformou o oceano, que era uma barreira, nos mares que passaram a ser estradas. Aquilo que durante séculos marcava o fim, o terminus, passou a ser porta de passagem.
Pedro Nunes, o matemático, o maior cientista da nossa história, sempre parco em palavras e nada dado a devaneios retóricos, disse-o sem timidez:
"Os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos: e o que mais é: novo céu e novas estrelas. E perderam-lhe tanto o medo que nem a grande quentura da torrada zona, nem o desconpassado frio da extrema parte do sul [...] lhes pode estorvar. [...] Descobrindo e passando o temeroso cabo de Boa Esperança: o mar de Ethiopia, de Arabia, de Persia, puderam chegar à India. Passaram o rio Ganges [...] a grande Trapobana, e as ilhas mais orientais. Tiraram-nos muitas ignorancias [...] E fezeram o mar tão chão que não há quem hoje ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos, ou se quer algum penedo, que por nossas navegações não seja já descoberto." (Pedro Nunes, 1537).
Estes acontecimentos colocaram os portugueses em contacto com povos de todo o mundo, misturaram-nos com gente de todas as cores, levaram a fé de Cristo aos mais recônditos cantos da Terra. E espalharam a nossa língua por todos os continentes, a nossa língua que, como diz o poeta, é também a nossa pátria. Os historiadores discutem há décadas como explicar estes factos surpreendentes. Razões económicas, políticas, sociais, religiosas têm sido avançadas como explicação, e todas elas são certamente necessárias. Mas talvez a resposta esteja em olharmos para nós próprios: Arrojados, às vezes imprudentes, sempre prontos para partir, voluntariosos e um pouco desorganizados, fascinados com o novo, com o diferente, sonhadores, assim foram portugueses de todos os tempos. Foi este movimento irreprimível de ir para fora das fronteiras do país que, com o passar dos séculos, nos levou a África e depois nos trouxe até aqui: nos combatentes do Ultramar estão séculos de história. E foi por causa dessa história que agora, no presente, contamos no mundo com várias nações que, com todo o respeito, tratamos como irmãs.
Portugal atravessa de novo momentos difíceis – mas, apesar de tudo, são dificuldades muito mais benignas do que aquelas por que muitos de vós passaram. É nestes momentos que o exemplo de tantos combatentes – tantos que estão aqui e outros tantos que já não se encontram entre nós – se torna mais necessário.
As circunstâncias específicas do momento actual são muito diferentes das que se colocaram diante dos combatentes do Ultramar, mas os desafios não são menores. Também hoje aquilo de que é mais preciso são homens e mulheres que amem a sua terra, e que estejam prontos para trabalhar e lutar por Portugal. Aquilo que os combatentes têm o dever de recordar é que o amor à própria terra é a primeira condição para todo o desenvolvimento e todo o progresso. Aquilo que têm a ensinar é que não há muito a esperar de quem não ama o seu país.
Este Dia de Portugal e esta homenagem aos combatentes relembram o que passou, mas sobretudo olham para o futuro. Estamos aqui como quem, para dar um passo em frente, tem de começar por fincar um pé atrás. Relembramos hoje os que combateram por Portugal porque é o futuro do nosso país que nos interessa. Os nomes que estão nas lápides deste monumento não evocam só saudade e perda; eles comprometem-nos: recordam-nos a todos, de maneira muito severa e muito exigente, que quaisquer que sejam as dificuldades, não se desiste de Portugal.
Viva Portugal !
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