Ainda sobre o Tribunal Constitucional

JOÃO CARLOS ESPADA Público 16/06/2014 - 01:02
Seria útil prestarmos mais atenção à experiência constitucional norte-americana
Tenho assistido com interesse ao debate sobre o desacordo entre o Tribunal Constitucional e a maioria parlamentar que sustenta o Governo. Agora que as paixões terão começado a baixar, gostaria de propor alguns tópicos para a conversação.
Em primeiro lugar, talvez seja útil recordar que o desacordo entre Tribunal e Governo é absolutamente normal. Ele decorre da nossa Constituição que, neste domínio, segue a tradição das democracias liberais euro-atlânticas.
Nas democracias liberais – ao contrário das imaginárias "democracias populares" herdadas dos delírios intelectuais de Rousseau – ninguém deve deter um poder ilimitado, incluindo as maiorias. Esta preocupação levou os pais fundadores da Constituição norte-americana, em 1787-88, a conceber um conjunto de freios e contrapesos para limitar e moderar o poder das maiorias. (Em rigor, estas ideias estavam já contidas na Constituição mista inglesa, embora esta ainda hoje não esteja vertida num único documento – o que leva algumas pessoas a pensar erroneamente que a Constituição inglesa não existe).
A existência de um Tribunal Constitucional é um daqueles freios e contrapesos, a par do bicamaralismo e da separação de poderes entre o Estado federal e as instituições estaduais. Contudo, diferentemente da concorrência entre maiorias políticas rivais nas duas câmaras e no nível federal e estadual, o Tribunal Constitucional não é suposto exprimir vontades ou programas políticos particulares. Ele deve velar apenas pelas regras gerais e imparciais do jogo político, consagradas na Constituição, no âmbito das quais decorre a concorrência entre programas políticos particulares rivais.
Por esta razão, a autoridade da Constituição e do Tribunal Constitucional dependem em grande medida do escrúpulo que este deve ter – e que deve expressamente manifestar – em não tomar decisões que saiam do rigoroso foro constitucional e entrem no âmbito da rivalidade normal e desejável entre propostas políticas rivais.
Se isto acontecer, ou se parecer que está a acontecer, não é "só" a autoridade do Tribunal Constitucional que fica enfraquecida. É também e sobretudo a autoridade das regras imparciais da Constituição que fica enfraquecida – uma vez que estas começam a ser vistas como matéria de pura rivalidade político-partidária, em vez de regras imparciais que regem e tornam possível essa rivalidade.
Neste sentido, vejo com alguma preocupação a recorrente identificação de decisões do nosso Tribunal Constitucional com as oposições ao actual Governo e à maioria parlamentar que o sustenta. Essa recorrente identificação pode naturalmente ser meramente fortuita e conjuntural. Mas julgo que deveria ser primeira preocupação do Tribunal Constitucional a demarcação clara, explícita e veemente de toda e qualquer tentativa de captura das suas decisões por uma parte do espectro político-partidário.
Esta demarcação devia também ser feita em termos substantivos. É importante que o Tribunal deixe claro que não está a interpretar a Constituição de forma redutora, isto é, que não está a reduzir o espaço pluralista de confronto e alternância entre propostas políticas rivais. Este aspecto é de crucial importância porque o propósito da Constituição é garantir a maior extensão possível do espaço de confronto pluralista, não o de o reduzir.
É precisamente por este motivo que tenho exprimido aqui reservas quanto ao chamado pacto de estabilidade europeu, ou Tratado Orçamental. Ao colocar os limites do défice orçamental no plano constitucional, este pacto arrisca-se a reduzir drasticamente o espaço de confronto pluralista entre propostas políticas rivais. Por outras palavras, arrisca-se a excluir da normal esfera parlamentar políticas particulares, usualmente associadas à esquerda parlamentar.
De forma semelhante, embora eventualmente de sinal político oposto, as recentes decisões do Tribunal Constitucional parecem excluir do normal jogo parlamentar políticas de redução da despesa pública que, em princípio, cabem exclusivamente à esfera parlamentar.
Neste capítulo, como em vários outros, seria útil prestarmos mais atenção à experiência constitucional norte-americana – onde a autoridade indiscutível do Tribunal Constitucional é acompanhada de intenso debate e escrutínio públicos das suas decisões, bem como da recusa em tomar decisões. O debate público – se for feito com elevação, o que infelizmente nem sempre tem sido o caso entre nós – reforçará a autoridade da Constituição e do Tribunal Constitucional.

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