Sistemofobia
JOÃO CÉSAR DAS NEVES DN 20140616
É preciso mudar o sistema!" A cada passo encontramos quem anseie por um novo regime, seja político ou económico, educativo, judicial e outros. O motivo é evidente: os problemas são graves, com causas profundas e estruturais, que resistem a medidas esparsas. Daí muitas pessoas bem intencionadas deduzirem a inevitabilidade da troca de sistema.
Infelizmente não entendem que um sistema, precisamente por ser profundo e estrutural, não está à escolha. O sistema evolui, corrige-se, não se substitui; e só melhoramos aquilo que respeitamos. Basta consultar a longa história das revoluções para o entender. Ouve-se falar em mudar de sistema político desde sempre, de sistema económico há séculos, de sistema educativo, judicial e outros há décadas. A verdade é que a esmagadora maioria dessas conversas nunca passa disso mesmo, conversa. Apesar de muito lamentado, criticado e enxovalhado, o sistema que temos continua a ser aquilo que é, e a servir-nos como sempre serviu.
Porque o sistema é aquilo que nos serve. Mal ou bem, não há outro. Tudo o que temos e somos devemo-lo ao sistema. Mergulhados em boas intenções, os críticos não notam a sua enorme ingratidão, pois só sobrevivem e desenvolvem graças ao regime que tanto desprezam. Até os meios que usam para o criticar e subverter lhes são dados pelo próprio sistema. A frase apócrifa de Lenine, "os capitalistas vendem-nos a corda com que os enforcamos" manifesta ironia, mas também dependência.
Pior, porém, são os raros casos em que a conversa se efectiva e o sistema é mesmo trocado. Aí, em geral, chega-se à conclusão de que, além dos defeitos, o odiado regime tinha também inúmeras vantagens, que ruíram juntamente com os problemas. Além disso, fazer um sistema novo é tarefa de povos e séculos, não de classes ou partidos, quanto mais de génios. A história está cheia de revoluções falhadas, que destruíram muito, antes de admitirem o falhanço, e de um punhado de revoluções conseguidas, que destruíram muito mais até se constatarem piores que o anterior. As poucas revoluções bem-sucedidas - como a Gloriosa, Americana ou de Abril - foram as que, apesar da retórica subversiva, se limitaram a corrigir defeitos num sistema que continuou.
No fundo, a estrutura social, política ou económica é como o corpo humano. Muitos lamentam o seu organismo, por doenças, deficiências ou opções estéticas, mas cada um tem o corpo que tem. Tudo o que é, faz e possui deve-o a ele, e não lhe é dado conseguir outro. Pode tratá-lo bem ou mal, melhorá-lo ou destruí-lo, mas nunca trocá-lo. Esta comparação parece inválida pois o nosso corpo é natural e irredutível, enquanto a sociedade, sendo construção artificial, pode ser mudada à vontade. Esta convicção é uma das ilusões mais típicas da arrogância europeia desde o Iluminismo. Até à Idade Contemporânea todas as culturas respeitaram a sua civilização, comunidade ou tribo como originante e sagrada. Ela podia ser melhorada ou degradada, mas tinha sempre de ser honrada como nossa origem, viveiro e natureza. Sem dúvida que a atitude mais interventiva e exigente dos últimos dois séculos nos trouxe grandes melhorias, com importantes aperfeiçoamentos aos sistemas. Mas também criou os maiores desastres da história que, sempre em nome de sistemas ideais, várias vezes quase eliminaram a humanidade.
Todos melhoramos o corpo com medicina, próteses, cosmética e alimentação, na condição de o manter. Com o sistema socioeconómico é igual. No caso extremo, o tão vilipendiado capitalismo é rejeitado desde que nasceu, porque a sua inigualável prosperidade vem junto com desigualdades, crises e outras malfeitorias. As propostas de sistema alternativo são legião. A sua única vantagem efectiva acabou por ser os contributos que essas ideias deram à evolução do capitalismo, que continua a ser o sistema que temos e criticamos.
Esta discussão é interessante mas nada tem que ver com a situação portuguesa. Nós apanhámos uma bebedeira de dívida e, ao sofrer a ressaca, tentamos acusar o sistema pelos nossos erros.
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