O pensamento mágico
ALBERTO GONÇALVES
DN 20140622
Após o heróico 0-4 com a Alemanha, as televisões foram naturalmente à cata de transeuntes frustrados. Encontraram imensos, cada um com a sua justificação para a derrota. Algures em Lisboa, à porta de um daqueles antros que congregavam os militantes do falecido BE, uma rapariga com ar de militante do falecido BE explicava que o pior nem era a goleada: era a goleada perante os alemães e, evidentemente, a sra. Merkel.
Apesar do profundo e até certo ponto indescritível absurdo da opinião, esta esteve longe de ser isolada e circunscrita ao Bairro Alto. Contaram-me que, na Sport TV, o ex-futebolista Carlos Manuel, com um sorriso onde em tempos medrava farto bigode, dissertava antes do jogo sobre a necessidade de vencer a chanceler alemã. O também funcionário da casa Pedro Henriques, que não conheço de lado nenhum e que é o único comentador televisivo que, no futebol e no resto, escapa ao ridículo, informou o sr. Manuel que a sra. Merkel trata de defender os interesses dos seus eleitores, e que teria sido preferível os nossos governantes destes 40 anos procederem de forma idêntica em vez de alimentar bodes expiatórios para a inépcia e a trafulhice.
Do que o País precisava era de um Pedro Henriques em cada esquina. Infelizmente, tal não se vislumbra possível, pelo que convém aceitar a realidade: muitos portugueses não aceitam a realidade. O tipo de cerebelo que julgava vingar as frustrações pátrias num jogo da bola é o mesmo que atribui a terceiros a responsabilidade pelos erros próprios. Por improvável que pareça, havia gente que ansiava por ver no relvado uma compensação face à "arrogância" da sra. Merkel. Sem surpresas, é a mesma gente que decidiu unilateralmente a obrigação da sra. Merkel em patrocinar-nos sem condições. Trata-se, sem tirar nem pôr, daquilo que os antropólogos designam por "pensamento mágico".
O pensamento mágico estabelece nexos de causalidade entre acções ou eventos independentes entre si. Imaginar que a queima de uma madeixa de cabelos implica que o seu antigo proprietário irrompa em chamas é igual a imaginar que um remate certeiro de Cristiano Ronaldo afectaria a economia alemã. Ou a imaginar que a prosperidade da economia alemã é que maldosamente impede o Estado indígena de gastar tudo o que gostaria. Estamos no reino, ou na república, do puro vudu, típico em sociedades primitivas e, pelos vistos, na portuguesa.
A má notícia é que o pensamento mágico é obviamente irrelevante para o mundo exterior. A boa notícia é que pode ser exercido com absoluta liberdade. Se o confronto em Salvador da Bahia não correu bem, nada impede a menina do BE de humilhar a Alemanha numa partida de poker com o Franz do InterRail, ou o ex-futebolista Carlos Manuel de exibir mestria nos dardos contra um retrato do ministro Schauble. Claro que o ideal seria um país capaz de escolher a racionalidade e lidar com as coisas como elas são. Mas isso já entra no domínio do sonho, e convém deixar o pensamento mágico aos especialistas.
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