Entre a vergonha e o orgulho


José Luís Nunes Martins | ionline | 2014.06.21
Ao contrário do que muitos julgam, não basta assumir uma culpa para nos vermos livres dela… como se a exibição isentasse de qualquer castigo.
Desde a saudável modéstia até à condenação absoluta de si – por uma espécie de fantasma de culpa criado e alimentado pela própria vítima, a vergonha é uma das formas mais íntimas, duras e afiadas de medo.
É natural e desejável que a consciência nos oriente através de juízos de valor a respeito de tudo quanto fizemos, fazemos e do que poderemos vir a fazer.
Um homem (bem formado) é capaz de reconhecer a diferença que separa as boas das más intenções. O bem do mal. A virtude de conhecer os seus deveres, omissões e erros.
A vergonha pode ser, nalguns casos, um tipo de veneno que ataca as fundações do espírito… colocando a pessoa à mercê de um hipotético julgamento dos outros, uma espécie de sentença tão injusta quanto inevitável.
Este pudor maligno rebaixa a pessoa ao ponto de ela se sentir obrigada a cavar um buraco, a fim de ir viver lá para dentro… escondida daqueles de quem teme o pior – um mal terrível que o seu medo não deixa sequer imaginar.
Esta vergonha de quem não fez mal algum é um problema sério na medida em que nos impede de ser quem somos… tal como se fosse um buraco negro que vai apagando, uma após outra, as estrelas do nosso céu interior.
Só há culpa depois de uma escolha, nunca antes. A vergonha só faz sentido depois de uma escolha má, e apenas na proporção da falta e das possibilidades de a ter evitado. Uma ação será tanto mais vergonhosa quanto maior for o mal que provoque e mais fácil tivesse sido evitá-lo.
A vergonha coloca quem a sente entre o vazio de uma solidão remota e a confusão de um caos sem sentido. Um isolamento diante de uma multidão imaginária de gente que aponta e grita acusações tremendas como se fossem verdades. 
Mas há quem tenha uma postura oposta em relação à culpa… sentindo-se orgulhoso de tudo o que faz. Mesmo do mal que faz. Mas, também aqui se comete um erro grande na medida em que, ao contrário do que muitos julgam, não basta assumir uma culpa para nos vermos livres dela… como se a exibição isentasse de qualquer castigo. Pode parecer coragem, mas é apenas uma cobardia requintada!
Ter orgulho no mal que se protagoniza só pode ser uma forma de tentar, de modo muito infantil, enfrentar uma vergonha autêntica e que até poderia ser benéfica enquanto reconhecimento humilde e redentor.
A perfeição encontra-se entre os males da vergonha e do orgulho. Importa pois que, no segredo dos teatros do nosso coração, não permitamos nem que a vergonha funcione como um elemento corrosivo que nos destrói a dignidade; nem, tão-pouco, que a euforia da exibição bruta nos impeça de compreendermos que também o pudor, por vezes, faz parte do caminho do perdão.
A cultura passa dos mais velhos para os mais novos, tornando-os capazes de ir criando, em si mesmos, mecanismos que lhes permitem sancionar-se em nome do comum. É aqui que aparecem os caminhos da vergonha como castigo e do orgulho como prémio. No entanto, há gente mal formada que visa o controlo e a agressão das consciências alheias através da violação subtil e eficaz da intimidade, manipulando quem assim passa a sentir-se inferior face a estes diabos (que, tal como todos os outros, têm sempre aparência de anjo).
Os que são verdadeiros culpados só raríssimas vezes sentem a sua profunda desonra… também os que se sentem desprezíveis sem redenção quase sempre são, na verdade, apenas vítimas inocentes de uma maldade, alheia ou própria…
É essencial que saibamos defender e promover a nossa intimidade. Nem tudo é para todos. Muitos são os tesouros que perdem boa parte do seu valor… porque quem os devia guardar os revela a quem não deve.

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