A esquerda e a Igreja
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.06.30
A Igreja Católica e a esquerda são duas das linhas doutrinais mais importantes da actualidade. Por isso a relação entre elas é um tema muito relevante. Até porque, apesar de origens e percursos muito diferentes, ambas encontram-se muitas vezes do mesmo lado das barricadas sociais. No entanto, no campo concreto, existe uma diferença radical, mas muito esquecida: a Igreja trata dos pobres, enquanto a esquerda fala dos ricos.
O catolicismo existe há dois mil anos, pelo que comparativamente as doutrinas revolucionárias são recém-chegadas. Apesar disso conseguiram uma solidez, profundidade e preponderância que falta à generalidade das outras ideologias e orientações, com excepção da Igreja. As doutrinas de direita, por exemplo, são muito mais indefinidas. Aliás, em boa medida, direita é aquilo que a esquerda diz sê-lo.
Além disso, a relação entre esquerda e Igreja tem a particularidade curiosa de ter passado por uma evolução tão marcada e paradoxal que, só por si, constitui um caso singular na evolução ideológica. Todos sabem que as doutrinas de esquerda começaram no meio de profunda hostilidade contra a religião, em geral, e a Igreja Católica, em particular. Este traço era tão marcante que serviu muitas vezes de símbolo identificativo. Mais do que propostas sociais ou ódios de classe, ser anticlerical era o ponto de honra do revolucionário.
No entanto, nos séculos seguintes foi-se registando uma dinâmica inesperada que a pouco e pouco aproximou atitudes que tinham sido radicalmente opostas. Em muitas lutas sociais, cristãos e socialistas encontram-se do mesmo lado, pretendo reformas semelhantes. Não admira que fossem descobrindo pontos de contacto e linhas paralelas. Pouco faltou para se dizer que Jesus foi o primeiro socialista. Nas últimas décadas, em certa medida, chegou-se ao extremo oposto do ponto de partida. Muitas pessoas tomam hoje como teste supremo do catolicismo a adesão a propostas de esquerda. É comum duvidar-se até da fé cristã de alguém, invocando apenas razões de natureza política.
Existem sem dúvida importantes elementos comuns entre as ideologias de esquerda e a doutrina cristã. Aliás, isso pode dizer-se de quase todas as culturas e tradições, razão pela qual existem cristãos de todos os extractos e orientações. Mas é importante também marcar as diferenças, precisamente porque essas estão hoje ocultas a muita gente.
A distinção mais radical é que a esquerda pretende fazer a revolução ou, ao menos, a reforma social para construir um mundo melhor. Os cristãos, pelo seu lado, têm a sua fé em Jesus e na Sua doutrina, duvidando de soluções e líderes mundanos, que falham sempre. Trata-se de uma diferença decisiva, por separar aquilo em que cada um dos grupos põe a sua confiança: Deus ou o partido.
Daí resulta que a doutrina católica pretende amar o próximo, aquela pessoa real, que se encontra ao lado. Os partidos reformistas e revolucionários lidam com soluções genéricas e longínquas, que resolvem os problemas. Em certos casos, os socialistas desdenham até da esmola, por criar alienação e desviar a atenção das políticas que seriam a solução.
Assim, ambos lutam pela justiça, mas com uma diferença subtil, que passa despercebida: os cristãos ajudam os pobres, a esquerda ralha aos ricos. Nas paróquias, nas ordens religiosas e nos movimentos de Igreja tudo está montado para apoiar os necessitados e a doutrina fala de "opção preferencial pelos pobres". Pelo seu lado, a finalidade da esquerda é censurar os capitalistas pela injustiça e pela miséria. Basta ver os cartazes desses partidos para notar como andam cheios de banqueiros e poderosos, corruptos e milionários. O movimento Occupy Wall Street só fala do "1% mais rico". A pobreza gera-lhes indignação, não compaixão. A esquerda gosta muito do Papa Francisco, mas interpreta como ataques a ricos as palavras dele em defesa dos pobres.
Esta é a diferença fundamental na atitude social: a esquerda quer justiça e progresso; Cristo traz a misericórdia que salva todos. Até pecadores e publicanos.
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