O burro e o Ferrari

HENRIQUE PEREIRA DOS SANTOS Público, 24/06/2014 - 14:39
Discutir sustentabilidade não é discutir o comboio, ou o carro, ou a bicicleta, ou o burro, mas sim a de encontrar, para cada situação, a melhor combinação que responda às necessidades dos utilizadores.
Só há muito pouco tempo, um amigo, que sabe bem mais que eu do assunto, me chamou a atenção para o facto de grande parte da rede ferroviária ter sido desenhada e construída numa época em que os concorrentes do comboio eram as carroças e os cavalos, porque o modo de transporte rodoviário não existia.
Explicava-me, com grande pormenor, que o primeiro troço de comboio é inaugurado em 1856, em 1863 já tinha chegado à fronteira, em Elvas, em 1877 já havia a linha Lisboa-Porto e em 1895, quando é registado o primeiro automóvel em Portugal, já grande parte da rede ferroviária estava construída e cobria o país quase todo.
Isto é, quando foi desenhada a rede ferroviária, o seu objectivo era chegar a todo o lado, trazendo à boleia o progresso.
A progressiva importância do transporte rodoviário (em 1931, os comboios registam os primeiros prejuízos, em consequência da concorrência do transporte rodoviário) torna obsoleta grande parte da rede ferroviária e reposiciona o comboio.
Um comboio que circula vazio é um desastre ambiental bem maior que um carro que circula com uma pessoa.
Muitos dos meus amigos que se preocupam com a sustentabilidade defendem o comboio em todas as circunstâncias, esquecendo que um comboio que circula vazio é um desastre ambiental bem maior que um carro que circula com uma pessoa.
E pensam, como eu pensava, que hoje circulam muito menos comboios que os que já circularam. Mas não, isso também não é verdade: com o desenvolvimento da automação, o cantonamento, isto é, o troço da linha ferroviária em que só pode estar um comboio, deixou de ser entre as duas estações mais próximas (o que poderia querer dizer vários quilómetros) mas passou a ser feito por troços de 900 metros, o que significa um aumento enorme da capacidade das linhas e do número de comboios em circulação.
Discutir sustentabilidade não é discutir o comboio, ou o carro, ou a bicicleta, ou o burro, mas sim a de encontrar, para cada situação, a melhor combinação que responda às necessidades dos utilizadores, com o mínimo de uso de recursos não renováveis.
O projecto agora lançado de transporte a pedido para zonas de baixa densidade populacional, assente no transporte rodoviário, é um bom exemplo de como é possível melhorar o serviço público e aumentar a sustentabilidade com base no transporte rodoviário.
Nada impede que os mesmos princípios sejam usados para melhorar substancialmente a capacidade de usarmos, confortável e racionalmente, a tracção animal com ganhos económicos e de sustentabilidade.
Por estranho que pareça, para além da bicicleta, ou melhor dizendo, das muitas opções que existem para as bicicletas, com ou sem apoio, seja de motor eléctrico, seja de dispositivos que armazenam energia quando se pedala em situações favoráveis, para a disponibilizar em situações desfavoráveis, há quem esteja a regressar à tracção animal, como uma boa opção, em algumas circunstâncias.
Quando pensamos que deixámos de investir na melhoria da tracção animal há cem anos, percebemos que é bem possível que o potencial de inovação e melhoria associado à tracção animal seja muito elevado.
Conheço directamente a joellete, uma espécie de poltrona todo-o-terreno desenhada para pessoas de mobilidade reduzida puderem percorrer qualquer caminho, puxadas e empurradas por outras pessoas.
Neste caso em concreto, a elevada sofisticação técnica, os materiais usados, a incorporação de tecnologia desenvolvida para outras utilizações, como os excelentes amortecedores, tornam esta cadeira muito confortável para quem a usa e muito fácil para quem a manobra.
Nada impede que os mesmos princípios sejam usados para melhorar substancialmente a capacidade de usarmos, confortável e racionalmente, a tracção animal com ganhos económicos e de sustentabilidade.
Em Portugal existe, em Sintra, um projecto que usa cavalos nos trabalhos florestais, mas outros projectos, noutros países, usam a tracção animal, por exemplo, na recolha selectiva de lixos.
É tempo de olhar para os recursos sem grandes preconceitos, mas também sem romantismos: os problemas de sustentabilidade são grandes e complexos e duvido de que possamos dispensar a inteligência para decidir o melhor uso de recursos possível para cada problema, em cada momento.

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