O Império do Meio
- Helena Matos | Observador, 22/6/2014, 7:46
Ser pobre hoje é sobretudo não ter capacidade para influenciar o Estado. Ou seja, é estar longe do Império do Meio.
Jornal i: Sindicalistas desmarcam greve para dia de Santo António após cedência da Câmara Municipal de Lisboa- (…). A "entrada imediata" de 150 cantoneiros foi uma das principais cedências que levou o sindicato a suspender a paralisação ao trabalho extraordinário entre os dias 13 e 22, assim como a greve dos funcionários de limpeza urbana de sábado. Para a contratação dos novos funcionários, a autarquia vai investir 2,25 milhões de euros anualmente.
Observador: Há corpos especiais na função pública que não podem ter as mesmas alterações ao sistema de suplementos que a generalidade dos funcionários públicos. Esta é a posição de ministros como Miguel Macedo (Administração Interna) e José Pedro Aguiar-Branco (Defesa) que vão defender na reunião do Conselho de Ministros de quinta-feira as especificidades da PSP, GNR e militares. A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (…) consagra aqueles profissionais como corpos especiais (…) veio determinar que as regras gerais da função pública não são "aplicáveis aos militares das Forças Armadas, aos militares da Guarda Nacional Republicana e ao pessoal com funções policiais da Polícia de Segurança Pública, cujos regimes constam de lei especial".
Nuno Garoupa: Temos juízes a mais. Segundo estudos recentes, somos dos primeiros em termos de atrasos nos tribunais. (…) O governo nisto não tocou, porque há um problema de gestão que não se quer enfrentar. Um dos principais problemas do nosso sistema é que os juízes não têm assessores, mas eles não podem ter assessores porque nós temos mais juízes que os outros. Se em vez de termos 19 juízes, tivéssemos 11 [por cem mil habitantes como acontece em Espanha], já dava para ter oito assessores por cem mil habitantes.
Este é apenas um pequeníssimo excerto das notícias que todos os dias nos chegam do Império do Meio. Do nosso, claro. O original ficava naquilo a que agora chamamos China e os seus habitantes não só se acreditavam no centro do mundo como viam os povos que os rodeavam como um conjunto de gente bárbara e atrasada. No nosso Império do Meio não temos o rio Amarelo mas temos o Tejo passando diante do Terreiro do Paço. E temos também os nossos membros do Império do Meio: ordens, associações, confederações, reitores, empresas municipais, observatórios, sindicatos, empresas públicas, institutos, conselhos superiores… eles são o nosso Império do Meio.
As notícias que escolhi são um exemplo desse poder frequentemente exercido pelo Império do Meio, por gente que não sabemos como chegou lá, gente que não se legitima nos votos mas sim no aumento da despesa, no crescimento da máquina estatal e na burocratização de todas as actividades.
Senão vejamos: Lisboa precisava mesmo de mais 150 cantoneiros? Alguém sabe quem liderou esta negociação pelo lado dos sindicatos? Alguém leu em algum lado uma explicação plausível para este aumento da despesa e do pessoal na CML? Nada de nada. Mas sabemos que o presidente da CML está candidato a líder do PS e por essa via também a primeiro-ministro, logo impossibilitado de se confrontar com a imagem de uma capital atulhada em sacos a tresandar a sardinha assada. O que ganhou a cidade além de mais despesa?
Se da CML passarmos para as excepções ao sistema de suplementos na função pública encontramos exactamente o poder político a tentar acalmar os ímpetos do Império do Meio no caso protagonizados pela PSP, GNR e militares. Mandaria de facto o bom senso que estas forças fossem tratadas como corpos especiais, mas acontece que uma das artes do Império do Meio é saber retirar as maiores vantagens de cada regime.
E assim os mesmos sindicatos que nos dias sim reivindicam para os membros desses corpos um estatuto de funcionário público, como o direito à greve e a manifestar-se, vêm nos dias não puxar pelos galões das especificidades dos corpos especiais na função pública. Vivendo no terror de se verem desautorizados ou mesmo humilhados por esses corpos especiais, os ministros que não se lhes conseguem impor nos dias sim – aqueles em que são funcionários públicos e galgam as escadarias da AR – vêm garantir nos dias não que eles serão tratados diferenciadamente porque são um corpo especial.
Por fim temos as declarações de Nuno Garoupa. Curiosamente a frase que mais vi repetida desta entrevista ao actual presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos foi aquela em que afirma "Os juízes do TC pensam como funcionários públicos". Sendo isso verdade já não é surpresa: a nenhuma instituição parece caber melhor que ao actual TC o epíteto do Império do Meio. Mas essa é uma ilusão: o TC muda de composição e as suas decisões são sujeitas a críticas.
O verdadeiro Império do Meio está naquela zona onde ninguém é responsável por nada e o absurdo passa ao estatuto de fatalidade. É a zona onde ficamos a saber que sendo nós um país com atrasos crónicos na justiça temos juízes a mais. Temos 19 juízes por cem mil habitantes. A Espanha contenta-se com bem menos: 11 para o mesmo número de habitantes. E aqui chegamos a um dos dogmas do Império do Meio: nada acontece por fraco desempenho dos seus membros, mas sim porque faltam meios e gente. Das escolas aos tribunais passando pela justiça, Portugal gasta mais do que muitos países ricos, mas para o Império do Meio nunca nada é suficiente e os maus resultados devem-se invariavelmente à falta de recursos.
É óbvio que os recursos, por maiores que sejam, nunca chegarão pois o que caracteriza o Império do Meio é a sua capacidade para absorver no seu próprio funcionamento os recursos que deviam ser transferidos para os serviços. Donde em muitos casos termos os mais tonitruantes membros do Império do Meio clamando contra o agravamento dos problemas que é suposto (para isso são pagos ou financiados) combaterem. Onde os comuns mortais veriam um falhanço, os membros do Império do Meio vêem uma oportunidade para ganhar influência. Vejam-se por exemplo as centenas de programas e acções criados para combater as assimetrias sociais na escola. No fim as assimetrias não param de aumentar e o Império do Meio pede mais recursos.
O que está em causa no Império do Meio não é que ele exista, mas sim que, como sucedia com o seu pretérito chinês, se lhe conceda uma espécie de estatuto celestial. Estatuto esse em que as declarações dos seus membros são aceites como verdades reveladas e a sua representatividade jamais questionada.
Por exemplo quantos pais votam para as associações de pais? E quantas associações de pais votam para as respectivas confederações e federações? E contudo todo esse conglomerado fala pelos pais. E que dizer dos sindicalistas que todos os dias se nos apresentam dizendo defender e representar os trabalhadores – a Constituição confere-lhes até o monopólio da negociação – quando, segundo o Livro Branco das Relações Laborais publicado em 2007, a taxa de sindicalização era de apenas 18,4%?
O nosso Império do Meio vive enquistado entre aqueles que são eleitos a nível nacional ou local para governar e que dependem para se manter no poder da sua capacidade para fazer crer ao Império do Meio que ele nunca será afectado (ou até pelo contrário que o seu poder será aumentado!) e os pobres. Pobres na medida em que ser pobre hoje é sobretudo não ter capacidade para influenciar o Estado. Ou seja é estar longe do Império do Meio.
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