O respeito institucional só se exige a alguns

Alexandre Homem Cristo
Ionline, 2013-10-28

A percepção que a maioria dos portugueses partilha acerca do governo não pode servir de alibi para os críticos ultrapassarem os limites do debate democrático

A separação de poderes e o respeito pela autonomia das instituições são dois dos pilares do regime democrático. Não são os únicos existentes, mas nestes tempos conturbados parecem ser os únicos que interessam à esquerda parlamentar, que os utiliza para sacralizar os acórdãos do Tribunal Constitucional (TC) e censurar as alegadas pressões do governo sobre os juízes do TC. A palavra é mesmo essa - sacralizar, divinizar a palavra do TC e, portanto, torná-la incontestável. Todo esse exercício retórico sustenta-se num equívoco conceptual e fácil de esclarecer: criticar uma decisão não é o mesmo do que contestar a sua legitimidade e a sua validade. E se muitos (governo, constitucionalistas e especialistas de direita e de esquerda) têm criticado as decisões dos juízes do TC, a sua legitimidade nunca foi posta em causa porque, até hoje, o governo cumpriu à risca as decisões dos juízes.
Se isto não é assunto novo, saliente-se a flexibilidade hipócrita com que se aplica este exercício argumentativo. Se o governo discorda de um acórdão do TC, mesmo cumprindo-o integralmente, a oposição acusa-o de blasfemar, assim desrespeitando a autonomia dos juízes do palácio Ratton. Mas se uma decisão dos mesmos juízes for criticada pelos deputados do Bloco de Esquerda, como aconteceu no caso da limitação dos mandatos autárquicos, já não é blasfémia - é apenas uma crítica construtiva.
Esta flexibilidade interpretativa é particularmente visível se alargarmos o espectro do respeito institucional a outras instituições do regime. Dois exemplos recentes. O mais grave, de Isabel Moreira, deputada à Assembleia da República pelo PS, que acusou o Presidente da República de traição. O outro, mais habitual, de Mário Soares que, na linha de intervenções públicas passadas, qualificou o governo de "bando de delinquentes". Em nenhum dos casos, as declarações geraram indignação ou foram analisadas sob a lupa do desrespeito institucional. Sobretudo no caso de Isabel Moreira, sublinhe-se, em que a acusação em causa não é uma coisa pequena. Ninguém se comoveu.
Não importa agora discutir se as decisões dos juízes do TC são acertadas ou se Isabel Moreira tem alguma razão nas críticas que faz a Cavaco (no sentido de pretender que o Presidente da República peça a fiscalização preventiva do Orçamento de Estado para 2014). O que interessa é reflectir sobre se não se estará a ultrapassar uma fronteira perigosa. É que as regras institucionais, numa democracia, não são apenas regras de civilidade. São o que permite que o debate político aconteça no seu enquadramento próprio, e nunca no domínio da moral. Isto é, o garante que a identificação dos adversários políticos surge pelas ideias e não pelo ódio. E que a validade do que é dito não depende apenas de quem o disse.
A percepção que, hoje, a maioria dos portugueses partilha acerca do governo ou da Presidência não pode, portanto, servir de alibi para que os críticos ultrapassem os limites do debate democrático. Se agora o permitirmos, em nome de pequenos interesses políticos, enfraqueceremos um pilar democrático. E amanhã, depois da crise e com outro governo, será essa a herança que deixaremos: um regime enfraquecido por nós próprios.

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