O orçamento, os mitos e a realidade

Alexandre Homem Cristo
ionline 14 Out 2013
O respeito pela lei fundamental não é tão determinado pela Constituição como o é pelo moralismo da esquerda
Por norma, debater as medidas orçamentais antes destas serem conhecidas é uma perda de tempo. Mas isso não impede o envenenamento da opinião pública ou o surgimento de mitos. E porque pela boca do primeiro-ministro já sabemos que haverá neste OE2014 medidas destinadas aos funcionários públicos, assim como um corte nas subvenções dos antigos políticos, é oportuno esclarecer desde já dois mitos que, provavelmente, irão ocupar parte do debate público nas próximas semanas: primeiro, o de que os funcionários públicos e os pensionistas têm sido os mais castigados pela crise; segundo, o de que a inconstitucionalidade das medidas é evidente.
1. Os funcionários públicos sofreram, em 2010 e desde então, um corte salarial de 5% e, em 2012, perderam os seus subsídios (o que não se repetiu em 2013). Por seu lado, os pensionistas viram-se igualmente sem os seus subsídios, em 2012, tendo havido ainda a introdução da contribuição de solidariedade, que se abateu sobre cerca de 10% dos actuais pensionistas. Nada disto é pouco e, naturalmente, todas estas medidas tiveram um impacto significativo na vida destes portugueses. Mas, não sendo pouco, é indiscutivelmente menos do que os sacrifícios que têm recaído sobre os trabalhadores do sector privado.
No privado, estima-se que mais de metade dos trabalhadores (55%) tenha sofrido um corte salarial de cerca de 11%. Além disso, são milhares os negócios e as empresas que, entretanto, faliram e, consequentemente, são milhares os novos desempregados desde que a troika aterrou em Portugal - mais de 211 mil pessoas, quase todas oriundas do sector privado. Ou seja, onde os funcionários públicos perderam nos salários e subsídios, os trabalhadores do privado perderam nos salários ou no emprego - a instabilidade laboral mantém-se um exclusivo dos privados. Convenhamos que a deles é uma situação pior.
2. Os mais ingénuos considerarão que a inconstitucionalidade de uma medida se define em função do texto da Constituição, como se de uma análise científica se tratasse. Não é bem assim. Ela define-se em função de uma interpretação da Constituição - uma interpretação política e, frequentemente, moralista. Nenhum caso o evidencia melhor do que o anúncio dos cortes nas subvenções dos políticos. Fala-se de um corte de 15% ou, até, de um corte de 100%, o que seria a suspensão de um direito adquirido desses antigos políticos. Pela recente bitola do Tribunal Constitucional, seria desde logo uma violação do princípio da confiança. No entanto, a esquerda, que sempre se insurge contra o corte nos direitos adquiridos e se afirma como protectora da Constituição, já anunciou a sua concordância. Afinal, parece que a inconstitucionalidade de uma lei não é nada evidente e que depende do seu beneficiário. O respeito pela lei fundamental não é tão determinado pela Constituição como o é pelo moralismo da esquerda.
Estes dois pontos não visam justificar tudo ou legitimar todo o tipo de medidas. Visam sublinhar o óbvio: enquanto alimentarmos mitos, ficaremos incapazes de pensar a realidade. Ultrapassemos, pois, os mitos que dominam o debate público e aproveitemos a oportunidade de, a partir de amanhã, melhorar o OE2014.

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