Purificar a nossa memória
Pe. Rodrigo Lynce de Faria
Teve um enorme acidente de condução. O seu estado de saúde era gravíssimo. Os médicos diziam que o prognóstico era muito reservado. Durante vários dias, a sua vida esteve por um fio. Disse mais tarde: «Vi a morte cara a cara. Tive medo e tive pena. Quantas coisas ficavam por fazer! "Se me deres mais um tempo de vida ― pedi a Deus ― prometo fazer muito bem a muita gente. E prometo também não perder tempo com coisas inúteis". E Ele ouviu-me».
A sua recuperação foi rápida, maravilhosa e completamente incompreensível. Os próprios médicos disseram que, do ponto vista científico, não havia uma explicação possível. A ciência não explica tudo. Consegue, algumas vezes, explicar como é que as coisas funcionam. Mas não consegue, obviamente, explicar porque é que elas existem. Nem porque é que elas são como são. Nem, como era o caso, porque é que elas não evoluem como era esperado que o fizessem.
A única sequela que lhe ficou foi uma misteriosa falta de memória. Não é que não se lembrasse da sua vida até ao dia do acidente. A questão era que, a partir dessa data, já não conseguia memorizar aquilo que lhe acontecia.
Quando no hospital lhe perguntavam «que tal passou a noite?», a sua resposta era sempre a mesma: «Muito bem, obrigado». No entanto, não era verdade. Passava várias noites mal. Quase não dormia. Mas a sua contestação não era uma mentira em sentido estrito. Ele não se lembrava do que tinha acontecido. Como não se recordava dos seus sofrimentos, era como se eles nunca tivessem existido.
Esta história leva-nos a pensar que, como diz A. Aguiló, grande parte dos nossos sofrimentos reside na nossa memória. Com frequência, sofremos mais por recordar mágoas passadas do que pelo dano real que naquele momento nos tenham feito padecer. As dores e os sofrimentos históricos concretos são, muitas vezes, menores do que aqueles que pode produzir o nosso incontrolado mundo interior. Sobretudo, quando deixamos a memória e a imaginação à solta sem nenhum tipo de travão.
Isto não significa, evidentemente, que a memória não seja uma potência maravilhosa. Sem ela, tudo na nossa vida seria efémero e passageiro. A memória dá profundidade à nossa existência.
No entanto, se queremos viver uma vida plenamente humana, necessitamos aprender a perdoar, a esquecer, a purificar a nossa memória. Caso contrário, quando menos esperamos, ela encarrega-se de tornar presentes assuntos que nos fecham sobre nós próprios. Que nos amarguram a breve existência que temos nesta Terra. E que nos fazem perder o tempo ― exterior e interior ― que seria tão útil para fazer o bem a tantas pessoas.
Pe. Rodrigo Lynce de Faria
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