Alguns equívocos e falácias dos debates que por aí vão

José Manuel Fernandes Público, 11/10/2013

A forma como Portas se estreou a apresentar as conclusões da troika fez-nos sentir saudades da clareza e frontalidade de Vítor Gaspar
Não esperava que acontecesse tão depressa. Não esperava que apenas três meses passados sobre a saída Vítor Gaspar já houvesse tanta gente com saudades dele. Mas bastou uma conferência de imprensa a apresentar as conclusões de mais uma avaliação da troika para isso acontecer. No tempo de Gaspar sabíamos que havia notícias desagradáveis nas suas apresentações, mas também que havia clareza e que nada ficava escondido na manga. Com Paulo Portas assistimos a um espectáculo diferente, que alguns quiseram ver como mais político e mais adaptado aos tempos da comunicação e da hipermediatização. O pior foi que no dia em que falou se percebeu logo que muita coisa ficara por dizer e explicar; e que dois dias depois descobrimos que também escondera as más notícias.
Foi como um flashback até aos tempos do engenheiro e da sua famosa apresentação dos resultados da primeira negociação com a troika, em que tentou criar a ilusão de que só havia boas notícias para dar. Esta recaída num estilo falsificador e teatral que se julgava ultrapassado não é apenas uma consequência do triunfo dos que acham que fazer política é criar ilusões - é também uma consequência de se ter começado a instalar no debate público a ideia de que é de novo possível vender ilusões. Nisso Sócrates era mestre e Portas, por muito talento que tenha, e tem, é apenas aprendiz. Pelo que ele e o Governo só têm a perder, se insistirem em seguir por esse caminho.
Não sei o que se passa em Portugal, mas o Verão parece ter entre nós o efeito de fazer esquecer as dificuldades. Foi assim o ano passado, quando se passou o Estio a falar de descidas de impostos antes da maior subida de impostos de sempre, e voltou a ser assim este ano, com a generalização da ideia de que a austeridade tinha acabado ou estava para acabar. Confesso que tenho alguma dificuldade em compreender, por exemplo, como tanta gente passou os dois últimos meses a dizer que não poderia haver mais medidas de austeridade, quando o défice público ainda está nos 5,5% e o crescimento da economia, a regressar, será sempre lento. Tivéssemos nós de reduzir o défice para 4,5%, ou mesmo 5%, em vez dos 4% da troika, e haveria sempre que cortar na despesa pública - ou seja, haveria sempre mais austeridade em 2014. Mas isso andou a ser iludido durante todo o Verão.
A incapacidade de falarmos verdade a nós próprios - incapacidade que tanto anuncia o fim do caminho das tormentas, como, do lado do Governo, chama "requalificação" ao que devia chamar "despedimentos" - começa logo em certas falácias que estão sempre a ser repetidas sem que ninguém as conteste. Três dessas falácias são a ideia de que há uma "opção pelo empobrecimento", a de que a dívida é descartável e a de que estamos a "roubar" os pensionistas. Seria normal vermos tais afirmações em cartazes de partidos revolucionários como o PCP e o Bloco de Esquerda, é menos normal ouvir esse discurso extremista na boca mesmo de quem mais tarde ou mais cedo vai voltar a governar o país.
A ideia de que há uma opção política pelo empobrecimento choca com a lógica: vivendo nós numa democracia em que os políticos têm de ir a votos, que políticos poderiam desejar empobrecer o seu eleitorado? A resposta de alguns propagandistas é tipicamente revolucionária: fazem-no porque estão eles mesmos a enriquecer ou porque esperam vir a enriquecer depois de terem estado ao "serviço da finança internacional".
A realidade é um pouco diferente, pois qualquer economista nos pode explicar que Portugal - e estou a falar de Portugal todo, não apenas do Estado - desde 1995 que consumia anualmente mais 10% do que aquilo que produzia. Foi assim que, em apenas 15 anos, a nossa dívida externa líquida (dívida do Estado, das empresas e das famílias) passou de inexistente para 150% do PIB, ou seja, não produzíamos para aquilo que consumíamos. Acertar o nível de consumo com o nível de riqueza, algo que parecerá razoável a qualquer cidadão que faça contas ao fim do mês, implica, naturalmente, consumir menos. Como a pobreza e a riqueza se avaliam pelo que consumimos ou não consumimos, podemos dizer que isso, na prática, se traduz num empobrecimento. Só que não resultou do desejo maquiavélico de políticos desapiedados e de banqueiros malvados, antes de termos andado a viver não apenas do que ganhávamos, mas daquilo que todos os anos íamos pedindo emprestado.
A segunda falácia é a de que devíamos denunciar a dívida, pois não há condições para a pagar. Eu também acho que, infelizmente, não temos condições para pagar a dívida tal como ela hoje se nos apresenta. Já o escrevi várias vezes. Mas sei que denunciá-la como tantos propõem redundaria numa catástrofe imediata. Nós não estamos na situação de termos as contas equilibradas e só desejarmos que, por via de uma renegociação, nos aliviem juros e prazos: nós continuamos a necessitar que nos emprestem dinheiro para os consumos correntes. Só em 2012 necessitámos que nos emprestassem, para pagar despesas para as quais o Estado não obteve receitas, o equivalente ao necessário para construir dez novas pontes Vasco da Gama. Se denunciássemos a dívida, os cortes seriam três ou quatro vezes mais brutais. Pior: nesse dia teríamos também levado à falência o fundo da Segurança Social e alguns dos maiores bancos portugueses.
Um país que necessita que lhe continuem a emprestar dinheiro para o dia-a-dia só consegue a benevolência dos seus credores se der provas de que consegue reequilibrar as suas contas. No início deste ano, o odiado Vítor Gaspar, o tal que nunca negociava nada e aceitava tudo, conseguiu essa benevolência dos credores em relação aos prazos de pagamento de uma parte das nossas dívidas. Não sei se os galarós que por aí andam a exigir da troika isto e aquilo teriam sido capazes de obter as mesmas concessões.
U- ma terceira falácia tem a ver com o chamado "roubo" das pensões. O tema é complexo e delicado e o Governo tem-no tratado com especial falta de sensibilidade e tacto, mas falar em "roubo" é, de novo, alinhar na retórica da extrema--esquerda. Primeiro, porque para que existisse "roubo" era necessário que o nosso sistema fosse de capitalização, isto é, que os pensionistas tivessem descontado para uma conta de onde um dia sairia a sua pensão. Não é isso que sucede: em Portugal os que trabalham descontam para pagar aos que estão reformados, e o montante das pensões não equivale ao que se descontou ao longo da vida, antes a decisões discricionárias, e muitas vezes eleitoralistas, do poder político.
Mesmo assim há muita gente que julga que aquilo que se descontou chegaria para pagar as actuais pensões, mas basta recorrer a um exemplo simples para ver que não. Imaginemos que alguém se reforma hoje com 63 anos (a idade média da reforma em 2012 foi aos 62,5 anos no regime geral) e que esse alguém descontou durante 40 anos, o que é razoável. Isso significa que os descontos que fez sobre todos os seus salários, os mais baixos do início da carreira e os mais elevados do fim da vida activa, terão de pagar a sua pensão durante os próximos 21 anos, pois é essa a sua esperança média de vida. Mesmo supondo que o dinheiro que foi descontando nunca teve de pagar períodos de baixa médica ou passagens pelo desemprego, o que é pouco provável, é fácil perceber que o dinheiro acumulado ao longo de 40 anos não daria para pagar 21 anos de pensões com os níveis que elas hoje têm no sistema contributivo.
Os revolucionários podem ignorar esta realidade e falar de "roubo" sempre que se procura tocar em qualquer coisa no nosso sistema de pensões. Aqueles que um dia, como os socialistas, também serão responsáveis pelo seu pagamento deviam agir com mais responsabilidade.

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