Sobre a democracia sem adversários e o slogan "Fascismo ou Revolução"

Público, 28/10/2013

Um espectador imparcial, parafraseando Adam Smith, certamente concordaria que se assiste entre nós a uma radicalização do discurso político. Uma recente entrevista de um ex-primeiro-ministro a um semanário de referência é apenas um exemplo excessivo, ainda que particularmente intrigante, de um fenómeno mais geral. Também parece inegável que esse fenómeno mais geral ocorre actualmente sobretudo nalguns sectores, felizmente não todos, situados à esquerda do espectro político. Mas talvez ele deva merecer uma reflexão preocupada entre todos os democratas, situados mais à esquerda ou mais à direita.
Uma certa radicalização do discurso político faz certamente parte dos custos das sociedades democráticas. Lembro-me de ter lido algures Raymond Aron citar a robustez dos debates parlamentares britânicos como expressão de um ritual saudável: enquanto se acusavam mutuamente no Parlamento, os britânicos evitavam as desconfortáveis revoluções nas ruas. Era, afinal, conjecturava Raymond Aron, um preço razoável para evitar o custo excessivo que os franceses pagavam pela sua bizarra preferência pelas revoluções de rua.
Devemos por isso sofrer algum radicalismo do discurso democrático como preço a pagar para evitar um mal maior: o fanatismo das revoluções na rua.
O outro lado da moeda, como se costuma dizer, deve, no entanto, ser também ponderado. E esse outro lado consiste em que as ideias, neste caso as palavras, usualmente produzem consequências. A banalização do radicalismo verbal pode conduzir à deterioração das regras do jogo democrático. Se isso acontecer, o respeito pelo fair play democrático pode dar lugar à chamada "luta sem quartel" entre facções rivais. Tivemos esse clima na chamada I República, entre 1910 e 1926. O remédio também não foi edificante: o Estado Novo, entre 1926 e 1974.
Existe uma mensagem subliminar na actual radicalização do discurso político de alguns sectores à esquerda: a de que a "não-esquerda" é não respeitável, está para lá dos limites do que pode ser aceitável, ou tolerável, ou moralmente permissível. Esse é o sentido inconfundível da retórica que atribui à actual maioria parlamentar intuitos de destruição social, avidez capitalista, revanchismo de extrema-direita, destruição da ordem constitucional democrática, e por aí diante.
Os leitores mais idosos recordar-se-ão do slogan do PREC: "Fascismo ou Revolução". A ideia era interessante: a "não-esquerda" portuguesa seria intrinsecamente anti-democrática, não sabia conviver com as regras da democracia. A parcela democrática dessa "não-esquerda" seria muito frágil e incipiente, ficando por isso sempre refém da "extrema-direita". Por essa razão, a democracia "à inglesa" não seria viável entre nós. Restava-nos então uma única alternativa: ou avançávamos para a democracia socialista (um eufemismo para a ditadura do proletariado), ou voltaríamos a cair no fascismo.
Esta tese tinha, apesar de tudo, duas dificuldades. Uma era a intrigante semelhança com a tese do dr. Salazar: a democracia não seria má em si mesma, sendo seguramente boa para Inglaterra, simplesmente não era viável em Portugal. Por outras palavras, nem o dr. Salazar nem os revolucionários do PREC eram contra a democracia. Eles até seriam a favor. Mas, em Portugal, ela não era possível.
A segunda dificuldade decorre da anterior. Se eu considerar que os meus adversários políticos são todos anti-democráticos, eu não posso conceber uma democracia com os meus adversários. Logo, se não posso conceber uma democracia com os meus adversários, isso significa que só posso conceber uma democracia com os meus partidários.
Este é um raciocínio irrefutável. Tem apenas uma dificuldade: uma democracia só com os meus partidários não é, por definição, uma democracia - é uma ditadura dos meus partidários.
Eis o ponto que talvez devêssemos ponderar: se começarmos a aceitar a "diabolização dos adversários em curso" (chamemos-lhe DAEC), em breve seremos levados a acreditar que esses adversários não são compatíveis com a democracia. Em nome da democracia, seremos então levados a conceber a democracia sem adversários. E obteremos então uma democracia perfeita: a democracia dos que concordam connosco.
Este paradoxo é resultado de um erro crucial, que referi aqui na semana passada: a identificação das regras gerais do jogo democrático com propósitos ou políticas particulares. Essa identificação é absurda, porque o propósito fundamental das regras gerais do jogo democrático é permitir a alternância entre políticas particulares rivais. Isso significa que umas vezes ganhamos eleições, outras vezes perdemos. Se ganhássemos sempre, seria um pouco monótono. Além disso, não haveria democracia.

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