A discussão sobre o futuro do euro não pode ser um monopólio dos populistas

José Manuel Fernandes Público, 25/10/2013

A ilusão europeia levou-nos a aceitar muitas perdas de soberania. Mas será isso aceitável em tempos de pesadelo europeu?
Um dia vamos ter de olhar para a floresta e não apenas para cada uma das árvores que nos vão surgindo pelo caminho. Pode ser fascinante discutir a semântica das diferenças entre "segundo resgate" e "programa cautelar", e é sobretudo fácil indignarmo-nos - num sobressalto de patriotismo - com o relatório de um eurocrata. Isso dá para ocupar os dias, mas esclarece pouco. Pior: adensa o nevoeiro em que cada vez mais comentadores se movem e perdem como baratas tontas.
Tomemos o caso do famoso relatório. Não me parece relevante discutir o seu conteúdo - se estamos ou não de acordo, se achamos ou não que é indigno -, antes compreender a sua origem. Aquele relatório não é apenas o despacho de um embaixador de um país amigo - aquele relatório é o texto de alguém que está em Lisboa em representação dos procônsules de Bruxelas. Aquele relatório existe porque ao longo das últimas décadas, sobretudo ao longo dos últimos anos, tomámos decisões atrás de decisões que transferiram poderes que estavam em Lisboa para Bruxelas (ou para Berlim).
Quando a recente crise se declarou, ainda antes de chamarmos a troika, já tínhamos aceite que a União Europeia tivesse o direito de olhar para as linhas gerais do nosso Orçamento do Estado ainda antes de os nossos deputados o fazerem. Hoje Portugal tem obrigação de entregar em Bruxelas, até ao final de Abril, um "documento de estratégia orçamental" que, mesmo sendo também entregue na Assembleia, esta não tem de formalmente aprovar. Praticamente todas as medidas controversas cujo detalhe foi conhecido com a entrega do OE para 2014 já estavam previstas nesse documento aprovado pelo Conselho de Ministros em Abril e depois rubricado pelo Eurogrupo. Se um funcionário diligente se preocupa agora com os obstáculos que o nosso Tribunal Constitucional possa vir a levantar para que Portugal cumpra o que prometeu, tal acontece não por culpa dele, por mais desastrado que tenha sido nos termos escolhidos, antes por ser uma decorrência de termos depositado no altar da União grande parte da nossa soberania orçamental. Pior: isso não se alterará no dia em que a troika se for embora.
Nunca tive problemas com a partilha de soberania - toda a integração europeia é um processo de partilha de soberania -, mas sempre coloquei uma condição: que essa partilha fosse transparente para os cidadãos e que estes mantivessem o controlo democrático das decisões. O que se está a passar desde que esta crise se declarou, e aquilo que está ainda a ser preparado, viola estes princípios. Hoje os Estados da União já aceitaram submeter os seus princípios orçamentais ao visto de Bruxelas; amanhã Bruxelas terá direito de veto ou de impor discricionariamente cortes ou aumentos de impostos, tudo em nome da moeda única.
Não estou a inventar nem a delirar. Esta semana a revista alemã Der Spiegel revelou os detalhes do ambicioso plano da chanceler Merkel para a reforma das instituições europeias e está lá tudo. Mais poderes para a Comissão Europeia. Criação de direitos de veto. Total controlo comunitário dos orçamentos nacionais. É este o sentido do "governo económico" de que tantos falam com tanta esperança. É este o preço a pagar para haver mais dinheiro no orçamento da União e alguma forma de empréstimos comuns. Os socialistas do SPD não discordam do essencial - não querem é que todas estas mudanças passem por uma revisão dos tratados, como pretende a chanceler. Martin Schulz, o presidente do Parlamento Europeu que os socialistas querem que suceda a Durão Barroso, até já disse em privado a Merkel que isso é muito perigoso, pois os povos europeus poderiam rejeitar tais mudanças em referendos nacionais, o que não deixa de ser uma preocupação muito "democrática".
Estes não são cenários de um futuro longínquo. Esta quarta-feira o Parlamento português esteve a discutir a Europa, mas nunca saiu do registo habitual: é necessário mudar as políticas europeias para mudar as políticas portuguesas. Nunca ninguém referiu o custo que essas mudanças implicariam em perda de soberania, o que não surpreende: os nossos políticos estão a habituar-se à bengala de atirarem as culpas para Bruxelas ou Berlim.
Entretanto havia pelo menos um tema da cimeira de líderes que decorre hoje e amanhã que deviam ter discutido: o de saber quem decide como e quando os bancos vão à falência depois de instituída a nova "união bancária". Em cima da mesa está uma proposta para que seja a Comissão Europeia, mesmo tendo depois os custos de ser suportados pelos Estados. É isso que queremos? É isso que aceitamos? Era bom sabermos com o que contamos para não estarmos, daqui por tempos, a rasgar de novo as vestes patrióticas no dia em que, sabe-se lá, nos vierem dizer que a Caixa Geral de Depósitos vai passar a ter um gestor eslovaco. Ou esquimó.
A principal razão por que nos entretemos com as pequenas árvores das nossas controvérsias diárias e tentamos não olhar para a floresta é porque existe a percepção que fazê-lo é tocar num dos tabus do regime: a moeda única.
Não foi ao aderir à Comunidade Europeia, em 1986, que Portugal perdeu o essencial da sua soberania - foi ao aderir à moeda única que perdemos a possibilidade de emitir moeda e de controlar as taxas de câmbio, dois instrumentos fundamentais para uma pequena economia aberta como a nossa. Durante muito tempo celebrámos a troca do escudo pelo euro, pois beneficiámos de taxas de juro historicamente baixas, mas hoje percebemos que esse dinheiro fácil nos fez mais mal do que bem. E que agora nem podemos fazer como em 1983/84, quando uma austeridade brutal mas de curta duração nos permitiu reerguer rapidamente a cabeça.
Não creio que hoje possamos fazer, sozinhos, marcha-atrás e sair do euro - mas também estou convicto que não é carregando no acelerador da "união cada vez mais integrada" que resolveremos os nossos problemas. O caminho tem de ser outro e há cada vez mais pessoas a defendê-lo. Na Alemanha um partido eurocéptico formado por intelectuais respeitáveis esteve à beira de entrar para o Parlamento. Em Inglaterra acaba de se constituir, no centro-esquerda, um novo partido eurocéptico, um contraponto aos eurocépticos do UKIP, que têm vindo a ganhar eleições locais. E na França - surpresa das surpresas - uma importante figura das elites europeístas, François Heisbourg, presidente do prestigiado IISS, o Instituto de Estudos Estratégicos, acaba de publicar um livro, La Fin du Rêve Européen, onde trata o euro como sendo "um cancro" que está a destruir a União Europeia, propondo que este seja abandonado pelo menos durante dez anos. Heisbourg explica mesmo como é que isso poderia ser feito durante um fim-de-semana prolongado. Na mesma França um ministro do Governo de Hollande fez esta semana declarações quantificadas sobre o que o país ganharia se o euro fosse desvalorizado, uma possibilidade que não existe à luz dos actuais tratados.
Na Europa a oposição ao euro tem sido protagonizada por populistas de extrema-direita e de extrema-esquerda e tratada como um tema tabu pelos partidos centrais. Num momento em que, para as opiniões públicas, o projecto europeu deixou de representar um sonho e se transformou num pesadelo, esta recusa corresponde a enfiar a cabeça na areia. Isso pode tornar-se já evidente nas próximas eleições europeias, em que o previsível progresso dos partidos populistas está a deixar Bruxelas e a elite federalista à beira de um ataque de nervos.
Não podemos continuar a fazer de conta que estes problemas não existem, a querermos mais políticas europeias nos dias ímpares e a ter sobressaltos patrióticos nos dias pares.

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