Ainda o mistério da I Guerra Mundial

João Carlos Espada, Público, 14/10/2013

À medida que nos aproximamos do centenário do deflagrar da I Guerra Mundial, novos títulos chegam às livrarias sobre esse "terramoto que abalou a Europa", como lhe chamou Élie Halévy. O mais recente é de Margaret MacMillan, a célebre historiadora da Conferência de Versalhes, e tem o sugestivo título The War that Ended Peace: How Europe Abandoned Peace for the First World War (Profile Books, 656 págs. £25).
Margaret MacMillan, directora do St. Antony"s College, em Oxford, esteve na semana passada no Colégio da Europa, em Varsóvia, onde proferiu uma "palestra Bronislaw Geremek" sobre o seu novo livro. Com eloquência, recordou a intrincada teia de acontecimentos que conduziu ao terramoto de 1914-18. Passou em revista os vários factores e as escolhas decisivas que terão contribuído para o precipitar dos acontecimentos. Recusou que o deflagrar da guerra tivesse sido inevitável. E sublinhou a surpresa total de uma guerra que interrompeu abruptamente um longo período de crescimento económico e paz relativa na Europa.
Este elemento de surpresa e de corte com o passado permanece ainda hoje no centro do que MacMillan designou como o mistério da I Guerra Mundial. A Europa atravessara um período de ouro entre a Conferência de Viena, em 1815, e 1914. Nesse período, a população europeia crescera de cerca de 150 milhões para 400 milhões, registando uma taxa de crescimento duas vezes superior à dos três séculos anteriores. O comércio livre, a globalização e as inovações tecnológicas geravam uma subida global dos níveis de vida, todos eles sem precedentes. Este clima de prosperidade comercial e pacífica gerara uma atmosfera de optimismo na Europa: a paz e o comércio livre pareciam ter vindo para ficar.
É este pano de fundo esperançoso e optimista que torna a eclosão da guerra tão surpreendente e, ainda hoje, misteriosa. Por que razão a Europa preferiu abandonar a paz e começar a guerra?
MacMillan recordou que a globalização não estava apenas a gerar o alastramento do comércio e da cooperação entre os povos. Havia também uma globalização de más ideias e de maus impulsos.
Retomando a tese de Elie Halévy sobre a confluência crescente entre nacionalismo agressivo e ideologias revolucionárias fundadas na luta de classes, MacMillan sublinhou o clima de instabilidade e imprevisibilidade gerado por essas ideias. O medo da revolução comunista ou do terrorismo anarquista alastrou nas classes médias.
Simultaneamente, cresciam ideologias nacionalistas, contrárias ao comércio livre e defensoras de blocos económicos rivais entre si. O evolucionismo de Darwin foi grosseiramente aplicado às nações, dando origem a uma visão belicista sobre a luta pela sobrevivência entre raças e nações. Estas ideias colectivistas e nacionalistas cresciam em oposição aberta à tradição do comércio livre e da soberania do consumidor no mercado mundial, uma tradição pacífica e mercantil herdada de Adam Smith.
Esta tradição comercial foi também acusada de gerar o declínio dos comportamentos e da cultura europeia, produzindo uma medíocre busca de satisfação monetária e material, fazendo decair as virtudes guerreiras e heróicas. A ideia de declínio e enfraquecimento tornou-se frequente, abrindo caminho a teorias alegadamente científicas sobre o apuramento das raças e a eugenia.
Por outras palavras, é possível dizer que a ideia de "planeamento colectivo" - planeamento das economias nacionais, do proteccionismo nacional, das culturas nacionais, até da reprodução das raças - rivalizava com crescente energia contra a chamada "sabedoria convencional" do século XIX: evolução espontânea e descentralizada fundada no comércio livre, soberania da pessoa, propriedade privada e decisão descentralizada, Estado pequeno, neutro e sobretudo garante da lei.
As novas ideias colectivistas - fundadas na luta de classes ou na luta entre nações - não terão directamente conduzido à I Guerra Mundial. Mas terão fertilizado o solo em que a guerra emergiu. Foram essas ideias que Hély Halevy denunciou, nas suas Rhodes Lectures, em Oxford, em 1929, alertando para que elas poderiam vir a produzir uma nova guerra na Europa. Essas ideias colectivistas, da esquerda e da direita, tinham aberto na Europa "a era das tiranias". Como escreveu Fritz Stern, esse grande historiador germano-americano, citando Halévy, "a I Guerra foi um terramoto que destruiu a velha Europa histórica. Hoje, podemos ver claramente essa guerra como o prelúdio da era totalitária. Esta primeira guerra total deixou um legado de violência sancionada; inflamou o nacionalismo; estabeleceu um socialismo de estado justificado pela guerra; e exacerbou quase todos os conflitos preexistentes na Europa."

Comentários

M. Vitalina Matos disse…
De facto tb considero esta guerra um mistério.
Provavelmente, a abordagem exposta no artigo ajudará a compreender as causas, q são certamente múltiplas e complexas.

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