Ter filhos

Inês Teotónio Pereira
i-online 13 Jul 2013
Ter muitos filhos não é uma aventura, é mais uma viagem sem programa definido. Igualmente cansativo e imprevisível
Ter filhos é uma aventura. Ninguém está preparado para ter filhos. Nós sabemos montar os móveis do Ikea, fazer currículos europeus, trabalhar em Excel, cozinhar na Bimby, escolher os melhores andróides e iPads, mas ter filhos não. Não estamos preparados. É uma enorme complicação. Não tem nada a ver com a simplicidade que é montar um beliche do Ikea. Ter filhos não é uma coisa previsível: por mais que se programe há sempre imprevisibilidades, faltam sempre parafusos. E nós não gostamos disso. Detestamos o imprevisível, a nossa vida não se presta a ter surpresas. Não temos tempo nem disponibilidade emocional para isso.
Quando programamos as férias ou compramos um armário fazemos tudo muito certinho. E se as coisas não correm como tínhamos planeado, na pior das hipóteses reclamamos o dinheiro ou devolvemos o armário, mas há sempre a possibilidade de voltar atrás. Com os filhos não há essa possibilidade: além de não sabermos como vai ser, não podemos voltar atrás. É para a vida, até que a morte nos separe. Com ou sem parafusos, é para sempre.
E nós não gostamos de coisas para sempre e que, ainda por cima, não são previsíveis. Assusta-nos. É tramado pensar que não podemos programar a vida dos nossos filhos da mesma forma que fazemos um bacalhau com natas na Bimby, em que basta seguir o livro de receitas à risca para sair tudo certinho. Com os filhos é tudo a olho, não sabemos os tempos, a velocidade, nada. Não há livro. É um tiro no escuro. Muito mais escuro e indecifrável que o discurso de Cavaco Silva.
Por isso é que ter filhos nos dias de hoje é uma aventura. É uma espécie de desporto radical. Não é que dantes os filhos fossem diferentes - eles continuam imprevisíveis, nós é que estamos diferentes. Somos mais complicadinhos. Gostamos de programar, de planear, de calendarizar, de prevenir. Medimos os prós e os contras ao detalhe e não gostamos das variáveis nas equações. Detestamos variáveis. É como a "tarde livre" nas viagens de grupo: ficamos sem saber o que fazer para preencher a tarde e acabamos no bar no hotel à espera de novas ordens.
Ter filhos é por tudo isto considerado um acto de heroísmo. E quanto mais filhos se tem mais lunático e corajoso se é. Eu, por exemplo, vou a caminho do sexto e já ninguém me dá os parabéns. Não se dá os parabéns a uma pessoa que tenha seis filhos. Fazem- -se perguntas. Há uma quantidade enorme de perguntas a fazer. Uma pessoa assim é uma espécie de curiosidade, devia estar no circo. Como é que se distribui o tempo entre todos, como é que se concilia a vida profissional com a criançada, como é que se estica o orçamento, como é que se tem paciência, como é que se transportam as criancinhas? E a mais importante de todas: porquê tantos filhos?
Ora bem, não há resposta para nada disto. Eu não faço ideia. As crianças sobrevivem, eu também e isso já é uma vitória. Ter muitos filhos não é uma aventura, é mais uma viagem sem programa definido. Igualmente cansativo e imprevisível. Mas já que se viaja, que valha mesmo a pena. Para se ficar no bar do hotel mais vale ficar em casa.
Se ter filhos já é épico, ter muitos é irracional. Não há razão que justifique tal aventura.

Comentários

Anónimo disse…
Sou a segunda mais velha de treze filhos: 10 raparigas e 3 rapazes! :) Parabéns pelo post! Gostei muito! Só acrescentava um pequeno detalhe: nós não "sobrevivemos", nós "vivemos"! :)
Anónimo disse…
"Não há razão que justifique tal aventura".
ADOREI toda a descrição fantástica destes seres épicos, lunáticos e irracionais, os que têm muitos filhos :)
E feliz pela Inês me recordar neste fantástico desabafo que, com 4 filhos, também não sou "tão complicadinha" :)
Parabéns pela família! (afinal alguém dá os parabéns ;))
Tânia Viana disse…
Muitos parabéns e as maiores felicidades para a sua familia.

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