Orgulhosamente analógico

Henrique Raposo
Expresso Quinta feira, 25 de julho de 2013

Antes de ler este livro, eu respeitava o João Távora. Respeitava a sua devoção por causas que parecem perdidas: a pátria, o catolicismo, o constitucionalismo monárquico, o Sporting. Admirava a carolice que traça uma linha na areia para dizer "basta" (uma espécie de "No Pasarán", mas em bom). Apreciava a forma como o João assume o preço de estar naquelas margens da sociedade. Como habitante da margem, de outras margens, eu só poderia admirar esta coragem galante. Uma coragem colocada na defesa de princípios analógicos anulados por um tempo demasiado virtual.

Depois de ler este livro, passei a gostar do João Távora, porque boa parte de "Liberdade, 232" entra num campo que me interessa: as memórias. Há muitos patriotas, muitos católicos, muitos defensores da Monarquia Constitucional, mas poucos têm a coragem de assumir a narrativa das suas memórias em redor destes temas, poucos assumem as estórias que dão uma luminosidade concreta às causas em questão. Por exemplo, nos jornais e na bloga já foram publicadas centenas de defesas teóricas do catolicismo e da fé. Sucede que essas teses abstractas e explícitas não têm metade do encanto de uma estória pessoal que ilustra o catolicismo de forma implícita. Estórias como aquelas que o João lança neste livro: as férias de Natal da infância, a pompa desejada da Missa do Galo, a alegria da festa familiar (a "primalhada") durante a ceia de 24 para 25, a ânsia pelos presentes. Por norma, o João recebia carrinhos Matchbox. Custavam 12$50. Nos Natais mais prósperos, o presente era um Meccano.
Não convoco os Matchbox e os Meccano por acaso. Este livro ilumina-se nos momentos em que ilustra o seu discurso com estes pedacinhos de memória. E são tantos: os putos do Casal Ventoso que "davam peras" nos putos de Campo de Ourique (o João e os amigos); os jogos de futebol "dois para dois com guarda-redes avançado"; o fascínio por Yazalde, o Travassos das pampas; os anúncios do chocolate Toddy e os estafetas da Marconi; os cinco tostões que o menino João recebia para o seu governo diário; o verão de 1968 numa Vila Nova de Milfontes que já não volta; Jacinto, o pescador de Milfontes que não acreditava na Lua postiça de Neil Armstrong; uma fuga até Alcântara, o primeiro acto da rebeldia adolescente; os habitantes de Alcântara que diziam "vamos ali a Lisboa"; a carreira n.º 9, a porta de saída de Campo de Ourique, pátria do João; a colecção Vampiro como leitura de casa de banho; as idas a Alvalade no Mini do tio Manel; os tios na guerra; o Natal dos Hospitais e os magalas que mandavam beijos para casa a seguir ao Telejornal; a telefonia dos relatos e dos Parodiantes de Lisboa; as pistolas de fulminantes no Carnaval; as curta-metragens do Charlot que o primo Manel tinha num Super 8; a Gabriela omnipresente nas velhas TV de válvulas; a frescura de Raul Solando e do Zip-Zip; o sentimento de cerco do PREC. E, claro, o apartamento dos avós, que ficava no n.º 232 da Av. da Liberdade. Nesta âncora familiar, o João encontrou, entre outras coisas, o armário dos Tintins.
Ao longo do livro, João Távora diz várias vezes que é conservador. Mas aquilo que define a predisposição conservadora não é este tipo de afirmação explícita. O que define a doçura tranquila do conservador é a capacidade de ver o mundo a partir da rua, do bairro, dos vizinhos, das pessoas e das coisas que nos rodeiam. Felizmente, tal como acabámos de ver, o João revela essa faceta. Ser conservador é deixar de lado os conceitos que nos esmagam com a maiúscula, é deixar entrar em cena os gelados Rajá, as bolachas Maria que se compravam ao quilo, o desejo de "ser o Damas" nas futeboladas, as crónicas do Carlos Pinhão n'A Bola, a almofadinha da bola (custava cinco tostões), as pistas de carros desenhadas a giz, as idas ao Zoo nos sábados de Aleluia, o velho gira-discos onde o João ainda bota vinis a rodar, as matinés de cinema nas ressacas felizes do Natal, a camisola tricotada pela mãe, o Principezinho que esconde uma dedicatória comovente de um pai silencioso. E, bem vistas as coisas, isto não é apenas conservadorismo. A forma como tecemos a percepção íntima das pequenas coisas que nos rodeiam é aquilo que nos define. Diz que é a causa das coisas.

PS: Emérito blogger, João Távora cometeu a imprudência de me convidar para escrever o prefácio do seu livro. Este foi o imprudente resultado. 

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