As clivagens que uma negociação revelou - sobretudo à esquerda

José Manuel Fernandes 19/07/2013
As várias oposições conseguiram, em poucos dias, dar mostras de estarem mais irremediavelmente divididas que todos os outros
Não sei se vai acabar por haver acordo e que tipo de acordo. Não é possível sabê-lo à hora a que escrevo. Mas devo dizer que a forma como as negociações entre PS, PSD e CDS têm decorrido me tem surpreendido. E impressionado positivamente. A nossa memória é curta, mas se nos recordarmos de algumas negociações recentes entre os principais partidos portugueses - as negociações para o Orçamento deo Estado de 2011 e as negociações enquanto o Governo de José Sócrates chegava a acordo com a troika - notamos uma enorme diferença. Nessa altura, negociava-se para a plateia, com gestos teatrais e chantagens permanentes; agora negoceia-se sem fugas de informação, em reuniões longas e com vontade de compromisso. Pelo menos é o que parece, e isso em política é importante. Aqueles que acham sempre que nada muda deviam meditar no significado destas diferenças, que são reais, mesmo que não se chegue a acordo. E lembrar-se que todos os principais participantes são os mesmos, menos um - o anterior primeiro-ministro. Sem surpresa, este tudo faz, a partir da bancada, para torpedear qualquer entendimento.
Vale a pena interrogarmo-nos por que razão escolheu a direcção do PS aderir a um processo como este. Era mais fácil simular uma farsa improvisada e concluir num ápice que não era possível qualquer entendimento com os partidos da maioria. Não parece ser isso - sublinho o parece - que está a acontecer. E tal só pode dever-se a uma constatação simples: o PS sabe que voltará mais tarde ou mais cedo ao poder, e também sabe que quando isso acontecer a realidade não mudará do dia para a noite. António José Seguro já deve ter falado vezes suficientes com Hollande para perceber que, mesmo com muitas mudanças na Europa - e nem sequer é provável que essas mudanças aconteçam -, não há forma de "acabar com a política de austeridade" pela razão simples de que Portugal continua a gerar défices que alguém tem de financiar. Se o Presidente da República tivesse feito a vontade formal ao PS e convocado eleições, daqui por meia dúzia de meses teríamos um Seguro no Parlamento a jurar que tinha sido surpreendido pela gravidade da situação e a propor medidas semelhantes às que hoje combate - ele sabe isso e sabe que nós sabemos isso. Até porque Seguro também sabe que ir para eleições agora é condenar-nos a um quase certo segundo resgate, e este implicará sempre condições mais duras para o país, para os portugueses e muita impopularidade para quem estiver a governar.
Apesar desta percepção, que julgo ser a da direcção do Partido Socialista, o caminho da negociação e do compromisso será sempre um caminho muito difícil. E não apenas por causa das ameaças de cisão, como a ontem formulada neste jornal por Mário Soares. O PS, tal como a generalidade dos seus parceiros sociais-democratas europeus, luta com a dificuldade de encontrar um caminho que lhe permita reconciliar os seus instintos naturais - a vontade de utilizar o Estado para corrigir a sociedade e domesticar os mercados - com as limitações financeiras impostas por um tempo de crescimento limitado. Até porque se as tentativas recentes de algumas lideranças socialistas e trabalhistas para encontrar novos caminhos - como sucedeu com Blair no Reino Unido e com Schroeder na Alemanha - tendem a ser demonizadas, a verdade é que faltam discursos ao mesmo tempo alternativos e realistas.
Estes dias tiveram por isso a virtude de tornar um pouco mais evidentes as clivagens entre a esquerda que quer ser poder e a esquerda que quer apenas ser contra qualquer poder - desde que não o seu poder. Várias linhas de factura surgiram com mais clareza, algumas delas atravessando os seus diferentes partidos.
A primeira clivagem, talvez a mais nítida, foi a que separou a esquerda de protesto e resistência das outras esquerdas. O pólo natural dessa esquerda é o PCP, que pomposamente chamou para conversações os seus satélites - os eternos Verdes e uma Intervenção Democrática que já ninguém se lembrava que existia -, e o Bloco de Esquerda. Esta esquerda não deseja governar o capitalismo, apenas ambiciona resistir e contestar, sonhando com o dia do seu assalto ao Palácio de Inverno. É uma esquerda que conhece o preço da aproximação ao poder, pois lembra-se de como o PC francês foi destruído na voragem da "frente de esquerda" dos tempos de Mitterrand. Não é por causa dos traumas da nossa revolução de 1974/75 que o PCP nunca se juntará num projecto de governo nacional ao PS - é por causa da sua natureza profunda.
O Bloco não está exactamente no mesmo campo do PCP. Ou, pelo menos, não está o Bloco de João Semedo. Entre os seus dirigentes, e na nuvem dos seus apoiantes e eleitores, há quem realmente sonhe com um governo de esquerda saído de uma plataforma capaz de obrigar o PS a sair do centro político. Mas nem todos pensam assim, e isso traduziu-se, esta semana, na proposta de um encontro com o PS ao mesmo tempo que, no site da organização, se multiplicavam artigos a encostar o PS à direita. Ou seja, a linha de clivagem entre a esquerda de protesto e a esquerda que não descarta vir um dia a ser poder passa pelo interior do Bloco.
A outra linha de clivagem é a que separa a esquerda realista, que procura ter consciência das dificuldades que terá no dia em que regressar a São Bento, da esquerda retórica, que só quer que isto mude e pensa pouco no dia seguinte. Essa linha passa pelo interior do PS e também esteve muito evidente esta semana. Há deputados socialistas que, hoje por hoje, se sentariam mais naturalmente na bancada do Bloco do que ao lado dos seus colegas moderados. Alguns deles até já votam regularmente com o Bloco, como sucedeu com a mão-cheia que subscreveu a proposta bloquista de denúncia da dívida pública. Outros estão apenas radicalizados pela sua oposição ao actual Governo. Por grosso, sobram as teses floreadas e o sonho de uma política "verdadeiramente de esquerda" enquanto falta a clarificação do que nos custariam algumas das opções defendidas, do fim memorando à mítica denúncia da dívida pública.
Esta semana acabou assim por nos recordar como a ideia do "governo de esquerda" é mais ou menos como o unicórnio: muito bonita, muito pura e ideal, mas pouco mais do que um animal mitológico e irreal.
A tensão que atravessa o PS é a tensão entre dois apelos: o apelo ao "entendam-se" feito pelo Presidente, pelos parceiros sociais, por empresários e pela maioria dos eleitores, e que envolveria os outros partidos do memorando, e o apelo ao "entendam-se, porra!" feito pelas luminárias de esquerda, pelo "povo" que conta e que ressuscitaria o eterno sonho frentista. O primeiro "entendam-se" é difícil, o segundo é impossível. Isso até António José Seguro sabe.
O grande risco não é pois falhar o que se idealiza como um "bom acordo" - até porque a margem de manobra é reduzida, uma vez que a troika não quis reunir-se com os partidos, mostrando como é escassa a sua flexibilidade. O grande risco decorre daquilo que aqui ontem escreveu Francisco Assis: "Os tempos actuais tendem a estimular a retórica tribunícia e proclamatória." Vindas daquele que é, provavelmente, o melhor orador da política portuguesa, são palavras certeiras. E ao mesmo tempo inquietantes: se houver acordo, ao mesmo tempo que muitos respirarão de alívio, o espírito dos tempos exigirá que ele seja rapidamente denunciado e destruído. Num país normal, um acordo é um ponto de encontro em que ambas as partes ganham alguma coisa; no nosso país há a tendência para só ver em qualquer convergência as cedências e as supostas derrotas dos dois lados.
Para mim o bom acordo é aquele que mais garantias der de que sairemos da tutela do memorando daqui por ano, mesmo que esse ano custe a passar. Penso mesmo ser este o critério mais realista e mais seguro para avaliar as decisões destes dias.

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