A chave da vida

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.03.04

A literatura de cordel que domina as nossas páginas e écrans baseia-se na divisão radical em bons e maus: o herói e as vítimas são excelentes e o vilão não tem perdão, numa lógica unidimensional. Na era da informação, esta falácia tem passado para a vida concreta, com terríveis consequências.
O axioma maniqueu, oposição radical de preto e branco, é cada vez mais predominante, pois a explosão de divertimentos impõe um inevitável simplismo de conteúdos e processos. Ultimamente, na ânsia de variar, floresce o anti-herói, que repete o defeito, invertendo as cores: os maus afinal são bons e os bons são maus, caindo na mesma ingenuidade. É corrente ver bruxos (Harry Potter), dragões (Como Treinares o Teu Dragão), demónios (Hellboy) e outros malvados tradicionais no papel positivo, ficando para vilões os heróis anteriores. Militares, polícias ou políticos, que deviam estar do nosso lado, são fonte do mal. Parece inovador mas é tão linear como a tacanhez criticada, além de promover a perversão.
A verdade, que conhecemos pelo menos por introspecção, é que todos somos cinzentos, e muito mais complexos do que parecemos. Nem a pureza incólume nem a depra- vação irremissível existem debaixo do sol. Vemos em nós e nos outros, todos os outros, o melhor e o pior, misturados numa combinação inextricável. Os grandes artistas são-no precisamente por captarem estes cambiantes, dando profundidade e ambiguidade às suas personagens.
Se a mesquinhez se limitasse ao campo literário e cénico, as coisas não seriam tão preocupantes como vê-la espalhar-se na vida real. Não são apenas as páginas de romances e cenas de filmes, mas folhas dos jornais e peças de noticiários que tresandam a maniqueísmo. A cada passo ouvimos acusações de malvadez radical contra fundamentalistas ou capitalistas, Europa ou partidos, enquanto outros, do Syriza a Obama, surgem infalíveis. Ou vice-versa. Pior, atrever-se a duvidar do simplismo da condenação ou exaltação implica repúdio automático e definitivo.
Qual é a alternativa ao postulado maniqueu? A resposta, muito mais antiga que a doutrina dominante, precisa de ser lembrada. Se até os mais perfeitos têm falhas e os piores bandidos mantêm certa dignidade e beleza, se todos estamos convencidos de ter razão e todos temos sempre alguma, por pouca que seja, a distinção válida não é tanto entre certo e errado, mas entre amar ou não o próximo.
Terroristas e banqueiros, pedófilos e patrões, por muito nocivos que sejam, devem ser respeitados, mesmo quando punidos e reprimidos. Mas como suportar crimes que bradam aos céus? Só é possível estimar os inimigos a partir da verdade e bondade que, apesar de tudo, mantêm no fundo da sua humanidade. Soa estranho apresentar isto como novidade, por estar na base consensual da nossa cultura. Não existem dúvidas de que na essência da civilização está aquele homem que afirmou aos sacerdotes e doutores, que se achavam bons, que prostitutas e corruptos, que se sabia serem maus, entrariam antes deles no Reino dos Céus (cf. Mt 21., 31). Foi Jesus, 2000 anos antes da troika, quem disse que devemos amar os nossos inimigos (Mt 5, 44), mostrando com a sua vida, e sobretudo com a sua morte, as razões desse amor.
Esta abordagem não elimina maldades nem ilude problemas. Limita-se a adicionar-lhes benevolência, compre-ensão, caridade, que são a única via real para a solução dos piores conflitos. "À pergunta "onde iríamos parar se renunciássemos à violência [contra os agressores] e apostássemos no perdão?", pode-se responder com estoutra: "Onde iríamos parar se não existissem perdão e absolvição, se saíssemos de cada injustiça de que somos vítimas com uma nova injustiça - olho por olho, dente por dente?"" (pág. 173).
Esta frase é de um dos mais geniais livros recentes, agora traduzido em português: A Misericórdia, do cardeal Walter Kasper (Principia, 2015); aquele texto que o Papa Francisco, em mais um gesto inesperado, divulgou na alocução do Angelus de 17 de Março de 2013. Misturando rigor técnico com linguagem sugestiva, sem fugir às questões cruciais e dolorosas, o volume muda radicalmente o nosso enfoque. A resposta ao mal insuportável, à justiça indispensável, aos embates inevitáveis e sofrimentos inaceitáveis, é a "experiência originária de Israel, que foi igualmente a experiência dos primeiros cristãos, a saber, a fidelidade de Deus em situações difíceis e humanamente sem saída, experimentada de forma reiterada ao longo da história" (156). Porque a misericórdia é o "principal atributo de Deus" (105, 112).

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