Pai herói
Inês Teotónio Pereira
ionline 2015.03.21
O meu pai chorava a rir. Caiam-lhe lágrimas pela cara abaixo como só acontece com quem é genuinamente feliz apenas pela graça da vida
Quando o meu pai chegava a casa corríamos todos para ele. Chegava quase sempre com um sorriso que se mantinha apesar do dia, dos problemas, do trânsito ou das chatices que tinha vivido. O meu pai gostava de chegar a casa. E isso, para nós, chegava. Ele gostava de nos ver, de nos abraçar, de nos fazer cócegas e principalmente de abraçar a minha mãe. O meu pai tocava piano fazendo caretas cómicas e também tocava guitarra abstraindo-se do frenesim típico de uma casa com nove filhos. O meu pai só lia o jornal ao fim do dia, sentado na cadeira que era só dele e apesar do barulho da televisão. Só nos mandava calar para ouvir o telejornal e só perdia as estribeiras com a política – muitas vezes, portanto. Também falava muito. Adorava falar, contar histórias e partilhar o que lhe tinha acontecido todos os dias. Nós eramos a sua casa, o seu mundo, a sua vida.
Tive a sorte de crescer assim. Cresci com um pai que trazia amor para casa, boa disposição, emotividade, verdade e sabedoria. Um pai que tinha preocupação de dar e não de receber, que gostava de partilhar e que tinha a preocupação de nos ensinar os valores nos quais acreditava. Ele tinha urgência em partilhar todos os dias ao jantar aquilo que achava importante os filhos aprenderem para um dia escolherem ser aquilo que quisessem. O meu pai não me perguntava pelas notas, não sabia as festas que eu tinha, não opinava sobre as minhas roupas e não me questionava sobre os meus estados de alma. Ao pé do meu pai eu era livre de ser quem era, de estar bem ou mal disposta, sem julgamentos, pressões ou exigências. O meu pai não me exigia resultados, pedia-me esforço, que amasse a vida e que reconhecesse o privilégio da família que tinha. Em troca, tinha-o a ele. Generoso, justo e alegre.
O meu pai chorava a rir. Caiam-lhe lágrimas pela cara abaixo como só acontece com quem é genuinamente feliz apenas pela graça da vida. O meu pai era alegre, era um exemplo de coerência, de trabalho e de grandeza. Também era intolerante. Sim, era muito intolerante: não admitia desonestidades, não admitia injúrias e odiava o sarcasmo. Era genuinamente bom. Não via maldade nos outros (com honrosas excepções em alguns políticos) e facilmente cedia para evitar o conflito, o ódio e a agressividade. Só tinha orgulho dos seus valores e da sua família, em tudo o resto era humilde.
O meu pai nunca conheceu os meus professores, também não me ensinou a andar de bicicleta, não me levava ao médico e não me lembro de me ter lido histórias à noite. Lembro-me que me pedia muitas vezes a opinião para me conhecer melhor e lembro-me que as raras vezes que se zangou comigo foi por coisas sérias que têm a ver com a formação de carácter. O meu pai era o suporte da minha mãe e os dois eram o nosso suporte.
Sei que os pais de hoje são diferentes do meu pai. Aos pais de hoje pede-se que vão à escola às festas dos filhos, que mudem as fraldas dos bebés, que lavem a loiça, que saibam escolher as roupas das filhas e que cozinhem o jantar. Os pais de hoje têm de partilhar funções que dantes eram da exclusividade das mães. O mundo mudou e nessa mudança é obrigatório que os pais também mudem. Não o fazerem é mais do que absurdo, é injusto. Mas o papel fundamental dos pais nem é esse, essa partilha de funções são uma consequência normal de uma realidade diferente. O papel fundamental do pai continua a ser transmitir amor e alegria aos filhos. Com o meu pai não aprendi a andar de bicicleta mas aprendi que numa casa onde se ri alto, onde o pai chora a rir e onde os filhos sabem que é lá que o pai gosta de chegar todos os dias, vive uma família feliz.
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