2 128 419,00 euro

JOÃO TABORDA DA GAMA | DN 2015.03.26

Meu caro Umberto Eco,

Espero que esta carta o encontre bem. Venho falar-lhe de listas, um dos seus temas preferidos, a propósito de uma coisa de que se fala muito em Portugal por estes dias, que são as listas VIP de contribuintes. Mas antes disso, parabéns pelo Número Zero, ainda não li, tenho ali para ler, dizem que é muito bom. Por aqui tudo bem, uns dias de paragem com os miúdos antes da Páscoa para retemperar forças e depois de volta ao trabalho.
Não sei se já lhe tinha dito, penso que não, mas admiro-o muito. Não é apenas a sua inteligência, a sua cultura, o seu ar charmoso, nem os bons livros que escreve - é sobretudo o sucesso que conseguiu com isso. Não vou esconder que isto vem muito de ter sabido que em 2005 o meu amigo tinha rendimentos de 2 128 419,00euro. Mais de dois milhões de euros a escrever livros e a dar conferências e entrevistas é uma vida conseguida. Não precisa de responder, mas isso à noite deve dar um bocado de vontade de rir, pensar nos colegas da universidade, e das letras, e no que eles pensam e dizem, ou pensam e não dizem, sobre si (temos também disso por cá, é o universal da universidade).
Se não fosse o tonto do Prodi em 2008 ter posto na internet 38 milhões de declarações de IRS, eu não sabia o seu rendimento. Calculava, especulava, mas saber, saber, não sabia. Assim que saiu a lista, fui logo à cata da sua declaração. Esteve poucas horas no ar e o site foi abaixo tal o volume de acessos curiosos, lembra-se? Depois lá mandaram tirar aquilo do ar, mas hoje já ninguém tira nada do ar, e lá está a lista por toda a internet.
Aqui também andamos às voltas com um caso que mete listas e impostos. Suspeita-se que os funcionários do fisco andavam a espiolhar as declarações fiscais de alguns políticos e de pessoas conhecidas e, aparentemente, foram tomadas medidas contra isso. Começou a falar-se de uma "lista VIP" de contribuintes cujos registos fiscais passaram a ser de acesso restrito, o país entrou em histeria coletiva, e já se demitiram dois altos quadros das finanças. O diretor-geral, um homem bom, sério, sabedor, competente, apanhado no meio disto tudo.
Obsessão por listas? Histerismo? Eu sabia que ia gostar. Eu sabia. Nunca me esqueço da sua frase "gosto de listas pela mesma razão que outras pessoas gostam de futebol ou de pedofilia. Cada um tem as suas preferências". Ah, também vamos ter uma lista de pedófilos, como na Idade Média, um dia escrevo-lhe sobre isso.
O que se discute então, em Portugal, sobre as listas? Por um lado ninguém quer admitir que os funcionários acedem às declarações sem autorização. É uma coisa muito portuguesa, isto de negarmos que há problemas. Gostamos de substituir a realidade por uma afirmação (no fundo, agora que penso nisso, é também aquilo que as listas fazem, não é?). Não sei se leu nos jornais ingleses, mas na semana passada foi condenado um funcionário das Finanças que tinha sido despedido por andar a espiar os impostos de um vizinho com quem tinha uma guerra por causa de um tubo qualquer (estes símbolos...). Nos Estados Unidos, são abertos cerca de quinhentos inquéritos por ano a funcionários por acesso não autorizado. Em 2008, um funcionário que tinha acedido às declarações de mais de duzentos atores e desportistas foi condenado a três anos de pena suspensa.
Todas as pessoas nisso são iguais, não vale a pena partirmos de ideias contrárias, haverá sempre um número de funcionários que não cumprem escrupulosamente as regras, que serão demasiado humanos, de Milão ao Milwaukee, passando por Milfontes. O que importa é, antes de mais, detetar esses acessos. Os sistemas devem estar feitos para que se saiba quem acede quando a quê. E quem não tenha uma razão justificativa tem de ser punido. Num primeiro nível pouco importa se o funcionário acede à declaração do primeiro-ministro, do vizinho do primeiro andar, ou se digita o primeiro número de contribuinte que lhe vem à cabeça. Não havendo justificação, tem de haver sanção. E o contribuinte tem de ser informado. Mas isso ainda se discute? Por aqui, sim.
Num segundo plano, há que prevenir o bisbilhotar interessado e vicioso, criando sistemas de alerta reforçados para certas buscas tão perigosas porque tão comuns: devem ser protegidas pessoas que tenham relações familiares ou de trabalho, ou de vizinhança, com o agente em questão. Há em todo o mundo, fiquei a saber, um grande problema com acessos não autorizados às declarações de colegas de trabalho, ou de pessoas com quem se tem relação, ou se deixou de ter, por exemplo nos divórcios. Há até, em muitos países, o cuidado para que o funcionário não possa aceder ao seu próprio registo.
Em terceiro lugar, há as celebridades, como o meu amigo, os políticos, os famosos, os chamados VIP, objeto de natural curiosidade acrescida. Merecerão estes uma proteção adicional? Em Portugal, o fisco entendeu que sim - e foi o caos. Se tiver tempo, desculpe maçá-lo com isto, mas sei que gosta deste tipo de coisas, se tiver tempo, dizia, veja as regras UNAX (unauthorized access to taxpayer data) em vigor desde 1997 e a "Publication 1075" do fisco norte-americano, de outubro passado. Estas são 160 páginas sobre a segurança da informação fiscal dos contribuintes. Nos EUA é um assunto sério, como sabe, já levou a muitos despedimentos e condenações, e ainda por cima com o escândalo de 2013 em que se suspeita que o fisco perseguiu deliberadamente organizações e empresas ligadas aos setores mais conservadores. Mas nesse documento, precisamente, sugerem a criação de uma "Do Not Acess List" em que um conjunto de pessoas, capazes de despertar maior curiosidade, tenham uma maior proteção. Mas em Portugal a coisa foi logo boicotada, porque, naturalmente, não estamos na América...
Começou porque lhe chamaram lista VIP, e não é preciso ser catedrático de semiótica como o meu caro Umberto para se perceber que isto vai logo do nome que se lhe dá. E aí veio todo o discurso demagógico, mas por que é que uns hão de ser mais protegidos do que os outros? A lista como elemento explicitador da diferença, a enumeração como bofetada. A dicotomia imanente, o mundo da lista e o mundo de fora da lista. E há ainda sermos confrontados com o poder absoluto e insindicável de quem faz a lista, qualquer lista, da lista de compras à lista VIP. O que lhe peço, Umberto, é que se fizer uma nova edição de A Vertigem das Listas, ou uma nova exposição no Louvre sobre listas, não deixe de usar o exemplo da lusa lista VIP. O exemplo de uma lista que não pôde existir, uma lista que não pôde existir porque em Portugal somos todos bons, e somos todos iguais. Todos.

Um forte abraço, e não deixe de me avisar com antecedência se passar por Lisboa,

João

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António