Folhas mortas
VASCO PULIDO VALENTE Público22/03/2015 - 01:26
Portugal era uma ilha de iletrados em que se admirava o PC e se persistia em venerar Sartre.
Resolvi fazer uma visita ao meu passado, o que evidentemente implicou ler o que lia há 50 ou 40 anos. Não tudo, claro, só aquilo de que ainda me lembrava e que, por uma razão ou por outra, tinha sido importante na minha vida.
De livro em livro, fui percebendo que desde muito cedo fiquei fixado nas duas grandes polémicas do tempo: a natureza do comunismo soviético e as pretensões científicas do marxismo. Ninguém acreditaria hoje no entulho que pouco a pouco acumulei sobre assuntos com tão pouco interesse e, em si próprios, tão claros. Mas na atmosfera de esquerda da minha casa e da universidade, eles exigiam tempo, zelo e proficiência. E não me desculpo porque toda a “inteligência” da Europa (excepto em Inglaterra) também não pensava em mais nada.
A Ditadura complicava as coisas. Os sermões dos “maîtres à penser” não se vendiam ao balcão como qualquer legítima mercadoria. Alguns beneméritos acabavam por os vender clandestinamente. Ou meia dúzia de intermediários acabavam por os trazer de Paris. Para seu mal, o regime do dr. Salazar não deixou que o descrédito do marxismo e do estalinismo (já quase completo em 1973) chegassem a Portugal. Aqui, a esquerda continuava a ler Althusser e a falar com inteira seriedade da “prática económica”, da “prática política” e, principalmente, da “prática teórica”. E gente, que depois deslizou para um liberalismo analfabeto (“neo” ou não), não se calava com o “corte epistemológico” de Marx e a soturna realidade genericamente apelidada de “Aparelhos Ideológicos do Estado”. Esta alta idiotia, sob formas variáveis, nunca os deixou.
Estava na televisão, em 1975, quando Cunhal, um estalinista indecoroso e beato, proibiu com a ajuda do MFA um documentário em que se mencionava de passagem a purga ao Exército Vermelho de 1938. Nessa altura, a Europa conhecia Kravchenko, Souvarine, Serge, o relatório de Khruschev ao XX Congresso, e também Koestler, Orwell, Milosz e Solzhenitsyn. Infelizmente, Portugal era uma ilha de iletrados em que se admirava o PC e se persistia em venerar Sartre. Porquê ir agora buscar esta velha história? Porque ela deixou a sua marca na cultura política portuguesa: a intolerância que reapareceu e aumenta dia a dia de ferocidade; a desonesta e facciosa simplificação da crise (da direita à extrema-esquerda); e a terrível ideia de que o Estado pode formar e corrigir a sociedade. No Portugal arcaico, que é o nosso, estas ressurreições não animam.
Portugal era uma ilha de iletrados em que se admirava o PC e se persistia em venerar Sartre.
Resolvi fazer uma visita ao meu passado, o que evidentemente implicou ler o que lia há 50 ou 40 anos. Não tudo, claro, só aquilo de que ainda me lembrava e que, por uma razão ou por outra, tinha sido importante na minha vida.
De livro em livro, fui percebendo que desde muito cedo fiquei fixado nas duas grandes polémicas do tempo: a natureza do comunismo soviético e as pretensões científicas do marxismo. Ninguém acreditaria hoje no entulho que pouco a pouco acumulei sobre assuntos com tão pouco interesse e, em si próprios, tão claros. Mas na atmosfera de esquerda da minha casa e da universidade, eles exigiam tempo, zelo e proficiência. E não me desculpo porque toda a “inteligência” da Europa (excepto em Inglaterra) também não pensava em mais nada.
A Ditadura complicava as coisas. Os sermões dos “maîtres à penser” não se vendiam ao balcão como qualquer legítima mercadoria. Alguns beneméritos acabavam por os vender clandestinamente. Ou meia dúzia de intermediários acabavam por os trazer de Paris. Para seu mal, o regime do dr. Salazar não deixou que o descrédito do marxismo e do estalinismo (já quase completo em 1973) chegassem a Portugal. Aqui, a esquerda continuava a ler Althusser e a falar com inteira seriedade da “prática económica”, da “prática política” e, principalmente, da “prática teórica”. E gente, que depois deslizou para um liberalismo analfabeto (“neo” ou não), não se calava com o “corte epistemológico” de Marx e a soturna realidade genericamente apelidada de “Aparelhos Ideológicos do Estado”. Esta alta idiotia, sob formas variáveis, nunca os deixou.
Estava na televisão, em 1975, quando Cunhal, um estalinista indecoroso e beato, proibiu com a ajuda do MFA um documentário em que se mencionava de passagem a purga ao Exército Vermelho de 1938. Nessa altura, a Europa conhecia Kravchenko, Souvarine, Serge, o relatório de Khruschev ao XX Congresso, e também Koestler, Orwell, Milosz e Solzhenitsyn. Infelizmente, Portugal era uma ilha de iletrados em que se admirava o PC e se persistia em venerar Sartre. Porquê ir agora buscar esta velha história? Porque ela deixou a sua marca na cultura política portuguesa: a intolerância que reapareceu e aumenta dia a dia de ferocidade; a desonesta e facciosa simplificação da crise (da direita à extrema-esquerda); e a terrível ideia de que o Estado pode formar e corrigir a sociedade. No Portugal arcaico, que é o nosso, estas ressurreições não animam.
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