E se Jesus não houvesse ressuscitado?
PAULO RANGEL Público 31/03/2015
Quando digo Pietà, digo toda e qualquer Pietà, por princípio. Na cabeça de muitos, estará seguramente – e como poderia não estar…? –, a escultura vaticana de Miguel Ângelo.
E, no entanto, afloram-me ao espírito e ao coração duas outras incarnações da Pietà. Uma, assaz conhecida, que há muitos anos encontrei no Museu Van Gogh de Amesterdão. E que, desde então, nunca mais deixou de me obcecar: a Pietà segundo Delacroix, de Vincent Van Gogh. A espaços, decerto em momentos mais introspectivos ou mais intimistas, defronto-me e deparo-me com ela; quero sempre regressar à sua presença, voltar à sua contemplação. Mesmo que em gravura ou em imagem furtiva e furtada de computador, quero ainda e sempre – e mais uma vez – inebriar-me com o seu mistério.
Ali, em Berlim, na “Nova Guarda”, não há Deus, nem deuses, mas sobeja humanidade, sobeja Pietà. Há mãe, há filho, há braços, há pernas, há vestes, há colo, há morte.
Nesta dicotomia, que é falsa e que pode ser perigosa, “cruz versus pietà”, invoca-se também um retorno às origens, a uma certa pureza dos sentidos, dos sensos e dos sisos iniciais. É bem verdade que a cruz – a crucificação como pena – começou por ser humilhação, degradação, vexação. É bem verdade que há algo de profundamente subversivo na adoração de um Deus condenado, humilhado, exposto à maior das fragilidades, morto do modo mais atroz, sucumbido perante o poder religioso, político e militar. E neste sentido a cruz – que era escândalo para os judeus e loucura para os gentios (1 Coríntios, 1, 23) – é um símbolo perfeito do cristianismo e da sua mensagem: os últimos são os primeiros, os humilhados serão exaltados. A execução do Nazareno é, por conseguinte, a realização supina do seu ensinamento, da sua pedagogia, do seu anúncio: o primeiro foi o último e, tendo sido o último, pôde e pode ser primeiro.
A passagem desse húmus inicial para uma cristandade de regime e para uma apologética do cristianismo transformou a percepção da cruz. A cruz, onde outrora residia o sofrimento, a paixão, o padecimento, passou a ser vista como a glorificação, a vitória, o triunfo. E com a sua disseminação – mesmo física e material – foi-se também vulgarizando e banalizando até na sua dimensão simbólica. De uma hipóstase perfeita da mensagem de Jesus e do seu ensinamento transmutou-se num instrumento de uma estética triunfalista e exaltante ou num artefacto de tal maneira presente que corre o risco de ser reduzido à invisibilidade e à indiferença.
Já a Pietà, conservando Cristo morto, no regaço da mãe, é o momento de total desamparo e da mais absoluta humanidade de Jesus. É o momento mais humanamente humano de Jesus, com Jesus despido, exangue e inerte, à nossa inteira mercê. Nela está a intimidade do abandono, o ventre da desolação, o útero da compaixão, o colo dos seres últimos, de todos os seres últimos.
A Pietà figura o Jesus morto, sem que nada se saiba ou quando nada se sabe sobre a sua ressurreição. É o momento em que, no despojamento e na desolação, se descobre que, ainda que não houvesse ressurreição, a vida e o ensinamento de Jesus tinham valido a pena. Acredito na ressurreição de Jesus e sei que isso é de novo loucura, bizarria e extravagância para o mundo. Mas amo também o momento em que da ressurreição, aqui ou a caminho de Emaús, nada sabíamos.
Se a cruz inaugura a teologia, a Pietà funda a humanologia. Em Jesus morto, jacente nos braços da mãe, há sentido. No Jesus morto, habita o sentido
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