PODEMOS IMAGINAR AS DEMOCRACIAS SEM PARTIDOS DEMOCRÁTICOS?
Rui Ramos | Público 23/3/2015
Talvez as democracias europeias não sejam imagináveis sem os seus antigos partidos conservadores liberais e sociais democratas, por menos estimáveis que eles nos pareçam agora.
Talvez as democracias europeias não sejam imagináveis sem os seus antigos partidos conservadores liberais e sociais democratas, por menos estimáveis que eles nos pareçam agora.
Em França, a Frente Nacional não conseguiu repetir nas eleições departamentais o primeiro lugar das europeias; em Espanha, na Andaluzia, PSOE e PP mantiveram o Podemos a uma distância respeitável. Os velhos partidos das democracias ocidentais diminuíram assim, até ver, o vedetismo dos partidos em ascensão na extrema-esquerda e na extrema-direita. Mas é provável que os antigos dualismos partidários continuem em causa. Durante muitos anos, a democracia na Europa significou a alternância no governo de dois partidos ou blocos de partidos, um conservador liberal e outro social-democrata. Hoje, até no Reino Unido, o duopólio dos Tories e dos Trabalhistas parece em risco, apesar de o sistema eleitoral estar calibrado para prevenir pulverizações.
A possibilidade de grandes rearranjos partidários nas democracias ocidentais levanta duas questões: a das suas origens e a das suas consequências. No primeiro caso, manda a falta de imaginação que se faça o rol das frustrações e deslocações sociais provocadas pela longa crise financeira e pela estagnação de economias sufocadas por burocracias, corporativismos e impostos. Acontece que o passado da maior parte das democracias ocidentais não é menos acidentado que o presente. Basta recordar a inflação, os conflitos laborais e o terrorismo esquerdista da década de 1970. Nem por isso, os partidos clássicos perderam então o controle dos parlamentos.
Há que pensar noutra explicação. A mais interessante diz respeito à relação entre os partidos e os cidadãos. Num certo momento, os velhos partidos europeus deixaram de tratar os seus eleitores como potenciais militantes, e passaram a tratá-los como uma espécie de consumidores, a quem prestam serviços por meio do "Estado social" e da gestão da economia. Previsivelmente, os eleitores começaram a comportar-se como quaisquer consumidores, mudando de fornecedor quando o serviço não lhes parecia satisfatório. Tal como num ambiente comercial, também passou a haver espaço para novas empresas com propostas aparentemente mais atraentes. De facto, tornaram-se a única história mediática de cada eleição: em França, a questão principal já é saber até onde subirá a Frente Nacional.
A questão das consequências é mais dramática. Não fica bem hoje elogiar os partidos tradicionais das democracias. Quando são pachorrentos, achamo-los demasiado "centristas"; quando agitados, excessivamente "facciosos". Frequentemente, os seus dirigentes parecem viver em bolhas à parte e nem sempre resistem a tentações e a abusos – mas os seus rivais também não (veja-se o caso, muito mal desmentido, dos negócios do ministro do Syriza com os funcionários públicos readmitidos). O facto é que, ao longo de décadas, têm respeitado os contextos institucionais onde as suas prevaricações podem ser denunciadas e limitadas: são castigados na imprensa, perdem eleições, são processados nos tribunais.
A nossa tendência para maldizer os velhos partidos pressupõe que seria possível distinguir entre eles e a democracia, e imaginar democracias só de cidadãos, ou com outros partidos. A democracia seria a casa e os partidos o seu mobiliário, temporário e descartável. Estaremos certos ao pensar assim? Faz sentido conceber a democracia sem partidos democráticos — e por partidos democráticos, não estou a falar apenas de partidos que têm votos, mas de partidos que acreditam no regime e respeitam as regras do jogo? De facto, talvez a democracia dependa mais dos velhos partidos de tipo conservador liberal e social-democrata do que nos convém admitir.
Os partidos que se têm revezado nos governos das democracias ocidentais corporizam, à direita e à esquerda, os princípios fundamentais desses regimes: o princípio da democracia pluralista e da alternância no governo por via eleitoral, e o enquadramento das democracias ocidentais pela integração europeia e pela aliança com os EUA. Em países como o Reino Unido ou a Alemanha, estiveram coligados em momentos fundamentais. São partidos distintos e capazes de disputar o poder ferozmente, mas que têm certos valores e uma história em comum. Os seus dirigentes sabem pressionar, mas também fazer concessões.
Partidos como a Frente Nacional ou o Syriza não partilham esses valores, e não têm essa história. Vieram das margens da contestação ao regime, e cultivam tradições inimigas das democracias ocidentais. A capacidade dos seus líderes para proporcionar governos estáveis, dentro dos quadros estabelecidos, é incerta. Os novos partidos cresceram a denegrir a classe política estabelecida e a prometer rupturas. É muito provável que receiem comprometer-se com acordos ou concessões, especialmente com os antigos partidos de governo (não por acaso, o Syriza preferiu outro partido marginal como parceiro de coligação). No entanto, parlamentos ainda mais divididos dependerão, para se manterem como base regular de governo, desses acordos e concessões. Portanto, não é de excluir que uma pulverização partidária, ao incluir "partidos anti-sistémicos", gere governos menos estáveis e menos eficazes. Se for assim, isso acontecerá precisamente quando os actuais regimes europeus estão confrontados com a estagnação económica e as pressões de Putin e do jihadismo, isto é, quando, mais do que nunca, há que tomar decisões.
Talvez valha a pena lembrar o que sucedeu à IV República Francesa em 1958. Os seus parlamentos estilhaçados e a sua cascata de governos fracos tornaram impossíveis decisões em relação à inflação e à guerra na Argélia. Tudo acabou num golpe de Estado militar, que deu o poder ao general De Gaulle, o que finalmente levou à bipolarização partidária (gaullistas para um lado, socialistas e comunistas para o outro). Hoje, na Europa, não há talvez exércitos golpistas, mas perante o acumular das dificuldades, não são totalmente improváveis derivas de autoritarismo plebiscitário, como já aconteceu pelo menos num país da UE, a Hungria.
O desaparecimento ou a redução dos actuais partidos de governo talvez não signifique mais do que uma substituição de partidos ou a passagem a regimes partidários mais complexos. Mas poderá também levar-nos a descobrir que estas democracias não são viáveis sem os antigos partidos, por menos estimáveis que eles nos pareçam agora.
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