Dom Quixote e Sancho Pança: uma alegoria ibérica?

A independência de Portugal parece dever-se a uma razão providencial, porque as outras nações peninsulares que a tentaram, fracassaram até à data.

A notícia recente da provável descoberta dos restos mortais de Miguel de Cervantes é um bom pretexto para reflectir sobre a dualidade ibérica, de algum modo representada nas duas principais personagens da obra-prima que imortalizou o referido escritor castelhano: Dom Quixote e Sancho Pança.
A independência do condado portucalense, do reino de Leão em que estava integrado, não decorreu de nenhuma singularidade que justificasse a sua autonomia, mas de uma lógica de afirmação de poder do próprio D. Afonso Henriques, em relação ao monarca leonês. Foram as ânsias de domínio e as rivalidades entre os lugares-tenentes da reconquista que deram azo aos vários reinos peninsulares que, na realidade, poderiam ter constituído um único Estado, em vez de um mosaico de diminutos países de precárias fronteiras.
Desses pequenos reinos, alguns tiveram vida efémera, mas outros, como Portugal, sobreviveram até à actualidade. Não faltaram, é certo, tentativas para reduzir o nosso país a mais uma província ibérica, sobretudo por parte dos reis castelhanos, que conseguiram submeter ao seu poder hegemónico as restantes nacionalidades peninsulares periféricas.
Também deste lado da raia não faltaram pretextos para a malograda união ibérica. Por razões dinásticas, Portugal esteve prestes a perder a sua independência, na crise de 1383-85 e, mais tarde, em 1580. A ascensão ao trono de D. João I afastou o perigo de um rei castelhano mas, com a morte do Rei Cardeal D. Henrique, Filipe II de Castela e Aragão é proclamado, em Cortes, rei de Portugal, mantendo formalmente a independência do reino lusitano. Embora, em termos jurídicos, a união fosse pessoal –de modo análogo a como o monarca da Grã-Bretanha é soberano de outros países, sem que estes sejam domínios britânicos – a verdade é que Portugal corria sérios riscos de se ver reduzido a uma mera região hispânica, a par da Catalunha, do País Basco ou das Astúrias. Daí a necessidade da restauração de 1640, que devolveu o trono à Casa de Bragança.
Se as questões dinásticas estiveram na base de duas graves crises da independência nacional, em 1385 e 1580, também a república representou um sério risco para a autonomia pátria. Boa prova disso é a iberista bandeira republicana, que assinala, a verde, o território nacional, em contraposição com o vermelho, que simboliza o país vizinho, dando lugar, por certo, a uma incoerência heráldica que é também, do ponto de vista cromático, muito infeliz.
Se, de um ponto de vista histórico, todas as razões apontavam para uma união, num único Estado plural, de todas as nacionalidades ibéricas, a independência de Portugal parece relevar uma razão providencial, tanto mais manifesta quanto outras nações peninsulares a tentaram, até à data sem sucesso.
É possível que esse casamento, tantas vezes anunciado e pretendido, mas nunca consumado, se deva a uma incompatibilidade histórica, que a literária contraposição entre D. Quixote e Sancho Pança parece simbolizar.
Com efeito, o «engenhoso fidalgo da Mancha» é uma caricatura dos antigos conquistadores castelhanos que, pela força das armas, conquistaram um império e desfizeram outros, como o inca e o azteca. Por seu lado, o simpático Sancho Pança parece ser o representante de uma raça de comerciantes que, como o Oliveira da Figueira, que Hergé imortalizou, fizeram-se ao mundo deixando saudades – e feitorias! – por onde passaram.
Todas as generalizações são injustas, até porque houve também entre os nossos descobridores impiedosos guerreiros – recorde-se o "terríbil" Afonso de Albuquerque, D. João de Castro, etc. – e, nas hostes castelhanas, exemplos de profunda humanidade, como foi o caso de Frei Bartolomeu de las Casas, o grande defensor dos direitos dos índios. Mas talvez esta comparação entre as duas personagens cervantinas e os dois Estados peninsulares, salvadas as devidas distâncias, possa ser uma imagem feliz do que deve ser o relacionamento entre as duas potências ibéricas: Portugal e Espanha estão chamados a respeitarem as suas próprias idiossincrasias e a caminharem juntos na construção de uma Europa mais unida e de um mundo mais solidário.

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