O meu irmão
José Ribeiro e Castro | Av. da Liberdade, 2015.03.22
Fez na passada sexta-feira, 20 de Março, um ano que o meu irmão morreu. Tinha 61 anos, a idade que eu tenho agora. Um cancro levou-o. De repente, assim no espaço de um ano. Já falei disso, há um ano.
Na missa de anteontem, em São Domingos de Rana – a sua Rua Sésamo –, falei do luto, de como as palavras vão lavando a tristeza e o vazio e deixando apenas o rasto que inspira e a presença. Sempre a presença - vaga, mas real. É uma coisa pascal, quadra que vivemos nesta altura: damo-nos conta de que é quando vemos que não é, sentimos que está quando reparamos que já não está. Foi assim com as mulheres cristãs que primeiro viram o túmulo vazio; e é assim com todos nós, quanto aos nossos que lembramos partidos.
Falei também dos seus filhos, treze irmãos: o Miguel, a Catarina, a Filipa, o Rodrigo, o João, a Madalena, a Carmo, o Marcos, o David, o Bernardo, o Samuel, o Lourenço e a Teresa. Foi este currículo que fez dele o fundador, o grande animador e o primeiro presidente da APFN – Associação Portuguesa das Famílias Numerosas, uma obra e um legado extraordinários. E também o líder europeu da ELFAC – European Large Families Confederation.
Diversamente dos meus sobrinhos, eu não tenho mais nenhum irmão. Éramos só o Fernando e eu. Não tinha escolha, nem ele. Não tínhamos “irmãos p’rá troca”, mas apenas a nós os dois. Talvez isso fizesse crescer entre nós uma cumplicidade fortíssima. Mesmo nos tempos de silêncio e de distância.
Em criança, zangámo-nos muitas vezes e bulhámos outras tantas. A espécie humana não é imune à luta animal pelo território; também isso temos de aprender a ocupar e a partilhar, a descobrir o que é reservado e o que é comum. Mas tínhamos, e desenvolvemos, uma cumplicidade fortíssima. E, talvez porque, nos conflitos, não tínhamos mais nenhum outro a quem recorrer, nem para pedir consolo, ou apoio, ou abrigo, nem para buscar uma qualquer arbitragem, soubemos – e aprendemos – que era entre nós os dois, mesmo, que tínhamos de reencontrar a paz e os seus termos. Só nós dois podíamos resolver os problemas que nós dois havíamos gerado ou entre nós dois haviam surgido. Nunca ficou nenhum por resolver.
Éramos diferentes. Por isso, complementares – nunca me lembro de rivais, nem eu dele, nem ele meu. Éramos uma parelha bem-disposta. É esse espírito e essa memória que tenho presente quando me empenho na instituição do Dia dos Irmãos, um projecto APFN e ELFAC. (Já agora, assine também a petição nacional e as internacionais.)
Ele era o mais velho e, desde muito miúdo, manifestamente engenheiro. Muitas engenharias fizemos lá em casa!
Uma vez, teríamos entre 11 e 13 anos – estaríamos, portanto, em 1965 ou por aí – resolvemos modernizar a casa e o conforto do nosso quarto. O meu pai, que era melómano, havia comprado, uns anos antes, um pick-up(assim se dizia) Blaupunkt, que era o seu orgulho: um móvel rádio e gira-discos, estereofónico, o último grito das maravilhas da técnica alemã. Tinha um pequeno inconveniente o aparelho: só dava para ouvir música na sala-de-estar.
Lembrámo-nos, por isso, de instalar uma extensão para o nosso quarto. Comprámos longos metros de fio eléctrico, duas pequenas colunas de som em segunda mão e pregos e braçadeiras em abundância. E com mestre engenheiro à frente e eu de operário aprendiz, esventrámos a parte traseira do pick-up Blaupunkt do meu pai e ligámos as suas colunas estereofónicas ao fio eléctrico, que meticulosamente estendemos, em duplicado, até ao nosso quarto, bordejando os rodapés e os alizares (i.e., as ombreiras) das portas de passagem. Chegada a ligação ao nosso quarto, foi ligar as extremidades dos dois fios às novas colunas adquiridas – e aí estava a estereofonia a soar em pleno no nosso quarto. Uma revolução tecnológica nos anos ’60!
O que mais nos surpreendeu, ao fim do dia, é que o nosso pai não se zangou muito, ao chegar a casa e a minha mãe, que tinha estado fora o dia todo enquanto os dois operários trabalhavam, lhe mostrar a novidade. Ralhou um pouco, mas não demasiado. Sobretudo não mandou desmontar o inovador engenho – ganhámos! E até nos pareceu ouvir risota entre a mãe e o pai, fechados no quarto deles. Sempre nos ficou a ideia de que o meu pai ficou dividido entre a lesão traseira infligida ao seu prodigioso pick-up Blaupunkt e a admiração pelo engenho inventivo das suas adoráveis criancinhas.
A qualidade do trabalho era, aliás, magnífica: o som funcionava quer na sala (o que o meu pai logo quis verificar), quer no quarto; e o fio estendido pela casa fora estava cuidadosamente pregado a rodapés e alisares, sem que a coisa chocasse minimamente. Um trabalho de categoria!
Uns dias depois, face à tolerância paterna, resolvemos introduzir mais um melhoramento – isto é, decidiu o meu irmão e eu fui atrás de aprendiz. Acrescentámos mais um circuito de fio, por aquela extensão toda, que interrompia o circuito de alimentação eléctrica do rádio. Assim, manejando no nosso quarto um pequeno interruptor de candeeiro, que adquirimos para o efeito, podíamos ligar e desligar o rádio à distância, sem termos que nos levantar. É certo que não dava para manejar o gira-discos, nem para mudar de estação de rádio; mas tínhamos música em directo a partir da nossa estação preferida, sempre que queríamos. Um telecomando da década de ’60, novo prodígio tecnológico!
Tudo o que sei de bricolage – e muita coisa aprendi e faço – devo-o a essa relação com o meu irmão. Imaginação e inventiva, em que éramos ambos bons, conjugadas com engenharia, que era o seu ofício inato. Fizemos grandes exercícios de química (para grandes sustos da nossa mãe), fizemos fotografia, muitas e variadas construções, tornámo-nos reparadores domésticos para os mais diversos usos (o que reforçava as amnistias paternas), fizemos filmes, que montámos e sonorizámos.
Depois, ele foi para engenheiro – e oficial de Marinha. E eu para outra vida.
Foi o primeiro do seu curso na Escola Naval. E, em Boston, no M.I.T. - Massachusetts Institute of Technology, de novo o primeiro do seu curso como engenheiro construtor naval. Deve-se unicamente à crise do país e ao declínio prolongado em que mergulharam as questões do mar, que não pudesse ter dado mais contributo à sua área de especialidade e excepcional vocação. Foi um grande oficial de Marinha, um estimado professor da Escola Naval, um quadro reputado do Alfeite e um engenheiro de altíssimas competências e aptidões.
Nunca desistiu do mar, que era bem mais de metade dele próprio. E os baldões da vida acabaram por o levar de volta a esse seu domínio, destacando-se como o grande motor do Fórum Empresarial para a Economia do Mar, uma convicção profunda, mais do que um emprego, já nesta última década em que Portugal parece querer voltar a reencontrar o mar que nos bordeja e nos preenche.
Mas foi na família que se tornou socialmente mais conhecido. A partir da sua família numerosa fez um promontório de luta pela família e pelos valores familiares, tornando-os mais vivos e mais sonoros, num tempo e num espaço em que precisamos tanto deles. E de porta-vozes. Foi um soldado incansável dessa causa. Uma causa que fundou e que continua. Foi aí que o Presidente da República escolheu, agora, distingui-lo a título póstumo. Obrigado.
O meu irmão foi sempre um apaixonado, irradiando optimismo, vontade e confiança.
Em tudo o que fez, o Fernando pôs a sua alma. Por isso, nos é tão fácil reencontrá-la em tanto que deixou feito. E, assim, seguir.
José Ribeiro e Castro
22 de Março de 2015
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