Afinal Portugal é a Grécia

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.03.19

Por baixo da espuma mediática estão as forças sociais, estrutura económica, situação financeira. Essa é a realidade determinante, mas tapada por interesses, manipulações, mitos e ideologias, uma superestrutura que, apesar diáfana e formal, actua sobre a matéria inferior de forma muitas vezes decisiva. Este período de ajustamento socioeconómico tem manifestado claramente a dialéctica.
Nos últimos seis anos e meio a espuma tornou-se mais espessa que nunca, esforçando-se por ocultar com afinco aquilo que o tumulto tornava evidente. Era preciso esconder que a gestão política e empresarial tinha sido ruinosa, que a banca estava combalida, muitas empresas, e até sectores, eram insustentáveis. Era isso que as discussões encobriam.
Portugal vivera desde inícios dos anos 1990 numa crescente trajectória de endividamento que não só acumulava uma esmagadora responsabilidade creditícia, mas distorcia incentivos, pervertia hábitos, deformava estruturas. As estatísticas económicas, os relatórios técnicos e os estudos científicos eram inegáveis, mas a espuma mediática existia precisamente para descartar repetidamente os avisos. Até 14 de Setembro de 2008, data da falência do Lehman Brothers, quando morreram os optimismos, revelaram-se as falácias, confirmaram--se os relatórios. E mudou a natureza da espuma.
Portugal tinha uma doença evidente, com largas camadas sociais improdutivas e alimentadas com benesses públicas. Isso levava ao desequilíbrio orçamental mas, muito pior, a uma estagnação económica que se arriscava a tornar endémica. Eram precisas reformas profundas, fáceis de descrever, exigidas por todos há décadas, sempre sepultadas na espuma. Agora o problema era inegável, e urgia estabelecer um caminho de solução. Existia porém um problema prévio. A primeira prioridade era convencer os parceiros europeus de que ainda havia um caminho de solução. Para isso foi formulada a tese fundamental que suportou o memorando de entendimento de Maio de 2011: Portugal não é a Grécia.
Toda a gente sabia que sofríamos exactamente da mesma maleita que o parceiro helénico. No entanto, era possível defender que a nossa versão era menos virulenta e o nosso organismo social mais flexível que a catástrofe dos Balcãs. Embora ambos nos cuidados intensivos, era credível afirmar que teríamos alta mais cedo. Nisto os médicos da troika foram cúmplices da espuma. Os nossos arremedos de reforma, que existiram mas claramente insuficientes, foram empolados para que os boletins clínicos dessem sempre positivo. Apesar das falhas, tropelias e discussões, o país foi aprovado em todas as avaliações trimestrais. Até que veio a alta: Portugal não é a Grécia.
À medida que esta tese se afirmava, a espuma foi deslizando para deduzir dela uma outra ideia, subtilmente diferente: Portugal afinal não tem um problema estrutural. Aliás Portugal nunca teve um problema estrutural. As nossas dificuldades vinham da crise internacional e, sobretudo, da malfadada austeridade, imposta pelo euro e pela Alemanha. Nós não tínhamos nada de mal. Aquelas reformas de que toda a gente fala há décadas afinal são desnecessárias, bastando, para que o país progrida, voltar a gastar dinheiro em programas de crescimento, pagos com mais endividamento. Assim renascerá aquele crescimento que não temos há quinze anos, cheiinhos de programas de crescimento.
Já há meses que voltou o desperdício, escondendo a gestão ruinosa, banca combalida e muitas empresas insustentáveis. Assim as elites se eximem de responsabilidades, atirando as culpas para o euro, troika, Alemanha, austeridade. Essa é a função da espuma.
Afinal Portugal é a Grécia? A doença é evidentemente semelhante, embora menos grave. É verdade que a população e economia reagiram melhor e algumas reformas foram feitas. Agora, com a ajuda do Banco Central Europeu, a dívida já paga taxas iguais às de antes da crise. Mas, com a ajuda da espuma, estamos também a regressar à passividade, compadrio, esbanjamento e ilusões que nos trouxeram à crise. Largas camadas sociais improdutivas preparam-se para receber mais benesses públicas.
As estatísticas económicas, relatórios técnicos e estudos científicos são inegáveis: após um interregno resmungão, estamos de novo a caminho da Grécia. A confiança de Portugal nas taxas baixas, graças à liquidez do BCE, é tão ilusória como a de Angola nos preços de petróleo altos. Daqui a meses ou anos virá o segundo resgate: então será bom saber que a culpa não é do euro, troika, Alemanha ou austeridade, mas da espuma mediática.

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