A lei dos pobres
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013.03.25
Em tempos a lei ocupava-se de culpados e criminosos; agora trata sobretudo de inocentes em actividades pacíficas, subitamente fora da lei. Os motivos dessas proibições e castigos são sempre excelentes; o resultado é perda de liberdade.
Exemplo recente são os sacos de plástico, passando de banalidade a multa. De repente, transformou-se em transgressão grave, certamente por razões ponderosas, aliás longamente escalpelizadas na imprensa. É impressionante o esforço legislativo, inspectivo e produtivo envolvido nesta grave questão que, até há semanas, era corrente e vulgar. Nunca o humilde saquinho julgou merecer tanta notoriedade.
Antes desta moda eram outros os comportamentos ordinários que mereciam a atenção das autoridades. Elas já nos tinham protegido dos bandidos que nos queriam assassinar com brindes de bolo-rei, gasolina com chumbo ou sabonetes sólidos e toalhas de pano em casas de banho públicas. Se alguém perguntar, por exemplo, o que faziam os nossos vigilantes legisladores enquanto se desenrolavam os sérios casos de corrupção e fraude financeira agora denunciados, a resposta é que, além de decretarem a ortografia, reprovando alunos que escrevam como sempre, andavam a erradicar os terríveis terroristas conhecidos como fumadores ou bebés causadores de incómodos socioeconómicos. Estes últimos foram mesmo condenados à morte, pena alegadamente abolida em 1867.
Felizmente, hoje estamos devidamente defendidos de algumas graves práticas criminosas como, por exemplo, guiar um carro. As centenas de exigências, imposições e regulamentos a cumprir só para ter automóvel, mesmo que não se atreva a andar com ele, mostram bem a severidade dessa sinistra actividade. Ultimamente ficou mesmo proibido de circular em certas zonas de Lisboa, talvez devido a horrores inconfessáveis praticados pelos motoristas com carros velhos, que por isso perdem os direitos mais básicos de cidadania: podem passar, mas a pé.
Imagine que alguém ousa vender produtos alimentares. Nada mais perigoso, nocivo e prejudicial do que esse terrível desplante. Ter um restaurante ou café é hoje um descaramento mais severamente vigiado, regulado e castigado do que a maior parte dos ladrões ou meliantes. Se os comerciantes são perseguidos, os produtores ainda serão tolerados, desde que não se atrevam a vender fruta, legumes, lacticínios e outros produtos perigosos sem as devidas cautelas. Se não se sujeitarem a inúmeras regras, processos, custos e licenças, tais substâncias só servem para consumo próprio ou ofertas a amigos. É mais complicado vender pão do que pornografia ou armas de fogo.
Se as pessoas que possuem essas comidas irregulares as oferecerem a instituições de beneficência, aumentam ainda mais a gravidade da sua transgressão. Porque ser pobre é, também ela, uma actividade perigosa e, portanto, fortemente limitada por lei. Nos lares de idosos as pessoas podem passar fome, mas não ter produtos irregularmente embalados ou fora de prazo; podem dormir na rua, mas não em quartos sem as dimensões estabelecidas e reguladas. Felizmente que essas inspecções não se estendem aos bairros de lata, onde os infelizes ainda podem viver em paz... até à primeira rusga.
Este último elemento traz uma pista para as razões desta profusão legal sobre a vida comum: todos os regulamentos referidos são exigências de rico, requintes de gente abastada. Nunca um desgraçado se lembraria de tais coisas, que aliás o prejudicam gravemente. Só os pobres deixaram de desejar um carro, que agora só pode ser novo e cheio de extras, do seguro ao colete reflector. São as suas actividades as mais perseguidas, da agricultura de quintal ao comércio de rua, que, pouco a pouco, a lei se foi lembrando de proibir ou tornar proibitivo. Ninguém usa mais sacos de plástico gratuitos do que os miseráveis, para quem tem imensas utilizações; o seu desaparecimento complica-lhes gravemente a vida.
O Estado serve o bem comum. Assim nasce, em geral após uma revolução contra um regime decadente. À medida que o tempo passa, porém, os poderes públicos vão sendo capturados por interesses. Os interesses não são maus; de facto todas as regras e legislações referidas e outras afins têm excelentes razões de ser. O defeito dos interesses é serem particulares. Quando o Estado cede a uma finalidade específica, gera custos noutros lados, que a perda do sentido comunitário impede de ver. As vítimas são sempre os fracos. Assim se instala a decadência, cheia de excelentes razões, que terminará em nova revolução, pois o regime corrompeu-se sem notar.
DN 2013.03.25
Em tempos a lei ocupava-se de culpados e criminosos; agora trata sobretudo de inocentes em actividades pacíficas, subitamente fora da lei. Os motivos dessas proibições e castigos são sempre excelentes; o resultado é perda de liberdade.
Exemplo recente são os sacos de plástico, passando de banalidade a multa. De repente, transformou-se em transgressão grave, certamente por razões ponderosas, aliás longamente escalpelizadas na imprensa. É impressionante o esforço legislativo, inspectivo e produtivo envolvido nesta grave questão que, até há semanas, era corrente e vulgar. Nunca o humilde saquinho julgou merecer tanta notoriedade.
Antes desta moda eram outros os comportamentos ordinários que mereciam a atenção das autoridades. Elas já nos tinham protegido dos bandidos que nos queriam assassinar com brindes de bolo-rei, gasolina com chumbo ou sabonetes sólidos e toalhas de pano em casas de banho públicas. Se alguém perguntar, por exemplo, o que faziam os nossos vigilantes legisladores enquanto se desenrolavam os sérios casos de corrupção e fraude financeira agora denunciados, a resposta é que, além de decretarem a ortografia, reprovando alunos que escrevam como sempre, andavam a erradicar os terríveis terroristas conhecidos como fumadores ou bebés causadores de incómodos socioeconómicos. Estes últimos foram mesmo condenados à morte, pena alegadamente abolida em 1867.
Felizmente, hoje estamos devidamente defendidos de algumas graves práticas criminosas como, por exemplo, guiar um carro. As centenas de exigências, imposições e regulamentos a cumprir só para ter automóvel, mesmo que não se atreva a andar com ele, mostram bem a severidade dessa sinistra actividade. Ultimamente ficou mesmo proibido de circular em certas zonas de Lisboa, talvez devido a horrores inconfessáveis praticados pelos motoristas com carros velhos, que por isso perdem os direitos mais básicos de cidadania: podem passar, mas a pé.
Imagine que alguém ousa vender produtos alimentares. Nada mais perigoso, nocivo e prejudicial do que esse terrível desplante. Ter um restaurante ou café é hoje um descaramento mais severamente vigiado, regulado e castigado do que a maior parte dos ladrões ou meliantes. Se os comerciantes são perseguidos, os produtores ainda serão tolerados, desde que não se atrevam a vender fruta, legumes, lacticínios e outros produtos perigosos sem as devidas cautelas. Se não se sujeitarem a inúmeras regras, processos, custos e licenças, tais substâncias só servem para consumo próprio ou ofertas a amigos. É mais complicado vender pão do que pornografia ou armas de fogo.
Se as pessoas que possuem essas comidas irregulares as oferecerem a instituições de beneficência, aumentam ainda mais a gravidade da sua transgressão. Porque ser pobre é, também ela, uma actividade perigosa e, portanto, fortemente limitada por lei. Nos lares de idosos as pessoas podem passar fome, mas não ter produtos irregularmente embalados ou fora de prazo; podem dormir na rua, mas não em quartos sem as dimensões estabelecidas e reguladas. Felizmente que essas inspecções não se estendem aos bairros de lata, onde os infelizes ainda podem viver em paz... até à primeira rusga.
Este último elemento traz uma pista para as razões desta profusão legal sobre a vida comum: todos os regulamentos referidos são exigências de rico, requintes de gente abastada. Nunca um desgraçado se lembraria de tais coisas, que aliás o prejudicam gravemente. Só os pobres deixaram de desejar um carro, que agora só pode ser novo e cheio de extras, do seguro ao colete reflector. São as suas actividades as mais perseguidas, da agricultura de quintal ao comércio de rua, que, pouco a pouco, a lei se foi lembrando de proibir ou tornar proibitivo. Ninguém usa mais sacos de plástico gratuitos do que os miseráveis, para quem tem imensas utilizações; o seu desaparecimento complica-lhes gravemente a vida.
O Estado serve o bem comum. Assim nasce, em geral após uma revolução contra um regime decadente. À medida que o tempo passa, porém, os poderes públicos vão sendo capturados por interesses. Os interesses não são maus; de facto todas as regras e legislações referidas e outras afins têm excelentes razões de ser. O defeito dos interesses é serem particulares. Quando o Estado cede a uma finalidade específica, gera custos noutros lados, que a perda do sentido comunitário impede de ver. As vítimas são sempre os fracos. Assim se instala a decadência, cheia de excelentes razões, que terminará em nova revolução, pois o regime corrompeu-se sem notar.
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