Tempo de réplicas: Jesus nasceu contra o preconceito

PAULO RANGEL Público 21/10/2014

Na narração do Natal de Jesus, já se encontra a luta contra o estigma, o pré-juízo, o preconceito, a discriminação.

1. Neste fim-de-semana, mergulhei no dia 22 de Dezembro de 2013, dia em que o meu pai completava – e completou – 80 anos. Era um domingo, dia de missa portanto. De missa também comemorativa desses 80 anos. Foi-me pedido que, num círculo de familiares e amigos, fizesse um comentário às leituras do dia e, em especial, ao Evangelho (Mt1, 18-25). Nesse domingo de inverno, que entretanto se tornou íntimo e longínquo, caber-me-ia então – prática heterodoxa, mas não inédita – fazer a homilia. Relutante, mas não intimidado, acabei por aceder ao convite e escrever um texto que então li. Parte dele, a segunda parte, carinhosamente expurgado das referências da intimidade, publiquei-a aqui logo a 24 de Dezembro ("Deus é Aquele que está"). A primeira parte, devidamente editada, publico-a agora. Publico-a, para usar uma linguagem sísmica, em pleno "tempo de réplicas". De réplicas sinodais…
2. Pode ler-se em Mt 1,18-25: "Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente. Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.» Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco. Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa. E, sem que antes a tivesse conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus."
3. Sabemos bem – mesmo que isso tire encanto, lustro e brilho ao nosso imaginário e à nossa tradição – que as narrativas da infância de Jesus não têm carácter histórico. Estas narrações não são história no sentido de "história-ciência", mas contam uma história: uma história que tem um sentido, que alberga mensagens e ensinamentos. Uma história que não é história, mas uma história que quer afinal que a história aconteça.
4. O que logo impressiona e salta à vista nesta leitura vem a ser a atitude e o exemplo de José. O casamento hebraico desdobrava-se em duas fases. Uma primeira – os chamados "esponsais" – que é uma fase de promessa, bem mais forte do que o nosso tradicional "noivado", mas em que, como se diz no Evangelho, os nubentes não vivem em comum. E uma segunda, que ocorria mais tarde, o matrimónio propriamente dito, em que marido e mulher passam a viver sob o mesmo tecto. Aqui, Maria e José estavam ainda na primeira fase, a dos esponsais.
Quando José toma conhecimento de que Maria está grávida, que faz? Primeiro, decide deixá-la. Mas deixá-la em segredo, discretamente, porque não a queria difamar. José mostra aqui, ainda antes de sentir a "experiência de Deus", a sua formação, dignidade, quiçá o seu amor. Reage como homem: não consegue conviver com a suposta infidelidade. Reage como um humano, mas reage com humanidade: não quer difamar nem expor a sua prometida. Entretanto, diz-nos o evangelista, aparece-lhe um anjo em sonhos e sofre a "experiência de Deus". E esse anjo indica-lhe que a criança que vem a caminho é Filho de Deus. E que faz José? José confia no sonho e aceita o repto que lhe é lançado.
É interessante verificar que, ao contrário do que habitualmente sublinha a tradição católica, não é apenas Maria que diz sim e aceita os desígnios de Deus. É também José que, em circunstâncias pessoais dificílimas – um homem que numa sociedade ferozmente patriarcal se julga traído pela sua prometida –, diz sim e aceita aquilo que crê ser o projecto de Deus. Esta leitura tem, para lá das implicações teológicas, um profundo significado humano.
5. Na verdade, esta é talvez uma das mais belas passagens dos Evangelhos na luta contra o preconceito. Quantos de nós, perante a aparência ou o transe de uma pretensa traição, arriscaríamos a sair de cena discretamente, minorando os danos da pessoa que nos fez sofrer? E, mais do que isso, quantos de nós confiaríamos na palavra dessa pessoa, pessoa que supostamente é motivo de escândalo? E quantos de nós estaríamos disponíveis para escutar em sonhos, em silêncio ou em oração a voz da consciência ou os "sinais de Deus"? Não seríamos muitos de nós, com o nosso moralismo dito cristão, os primeiros a apontar o dedo, a condenar e a apurar culpas? Como seria julgado o casal de Nazaré pelos seus pares ou, pelo menos, pelos seus pares mais zelosos? E como seria visto José, até pelos marialvas menos religiosos?
6. Está profunda e justamente enraizada a ideia cristã de que o Messias – que deveria nascer glorioso, rico e triunfante – nasceu na maior indigência e simplicidade. A história aqui narrada, todavia, mostra que Jesus não nasce apenas simples e despojado, longe da opulência e da riqueza. Jesus nasce também e ainda, de um amor posto à prova, sujeito ao opróbio, contra todo o preconceito e contra todo o moralismo. Na narração do Natal de Jesus, já se encontra a luta contra o estigma, o pré-juízo, o preconceito, a discriminação. Quando o Jesus maduro se recusa a condenar a mulher adúltera ou acolhe a samaritana, é ainda e sempre o mesmo homem que nasce de uma relação em que José não quis ostracizar Maria, em que José soube acolher Maria, em que José recusou seguir o rasto do preconceito.
O Natal de Jesus não surpreende apenas por o Filho de Deus vir ao mundo na maior humildade e simplicidade; surpreende também por Jesus ser o fruto directo da recusa do preconceito e do moralismo. Cristo e o cristianismo nasceram contra o preconceito.

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