Cadeado no telefone
Inês Teotónio Pereira | ionline | 2014.10.25
Entre o telejornal e o Disney Channel, quem ganha tendo em conta que os pais podem ver o telejornal quando os filhos forem para a cama?
Em casa dos meus pais o telefone estava quase sempre trancado com um cadeado por uma chave que a minha mãe escondia e que o meu pai tinha o desejo de engolir todas as vezes que abria a cartinha com a conta do mês. A chegada da conta do telefone e da electricidade, assim como a visita do "homem da taxa" (da televisão), eram alturas tensas em casa dos meus pais. Mas o telefone era o caso sintomático. O telefone, na prespectiva de quem pagava as contas, não era um serviço prioritário e o seu uso devia ser esporádico, limitado e extraordinário. Esta teoria chocava de frente com a ideia que nós, filhos, tínhamos da invenção de Bell: para nós, a água e o telefone tinham a mesma importância na função de sobrevivência da espécie, pois sem o telefone corríamos o perigo de ficar social e dramaticamente isolados. Para conciliar as duas vontades determinaram-se regras: só podíamos fazer chamadas locais, só depois das oito da noite e cada chamada tinha uma duração limitada pela ordem "desliguem o telefone!" passados 20 segundos do início do telefonema.
Está claro que furámos muitas vezes o sistema e que muito sofreu o meu pai com as contas que lhe iam chegando apesar do cadeado, mas sobrevivemos todos e o aparelho jaz hoje em paz, com as honras de um herói de guerra, na cave da casa dos meus pais.
Na mesma senda do telefone, também a televisão tinha as suas limitações: horários limitados e apenas dois canais. Quem queria ver televisão tinha de se sujeitar aos condicionalismos tecnológicos da época o que obrigava as famílias a estarem sempre reunidas caso quisessem ver televisão. Os pais viam os mesmos programas que os filhos e os filhos só conseguiam ver televisão na companhia dos pais.
Educar filhos na altura dos meus pais era canja. As regras eram impostas pelos condicionalismos financeiros (telefone) e tecnológicos (televisão) e não era preciso recorrer a princípios pedagógicos, de vida saudável ou morais para impor regras. Hoje, para nosso tormento, não é assim. Hoje há todo um vasto número de teorias sobre as várias opções que os nossos filhos têm e nós, pais, somos forçados a ter uma resposta para cada teoria com a grande desvantagem de não termos exemplos a seguir. Na verdade somos uns pioneiros desta nova era educacional e cabe a nós andar de catana em punho a devastar o denso mato das novas tecnologias, redes sociais e meios de comunicação.
Vejamos: alguém sabe com que idade devem os meninos ter facebook ou Instangram ou que tipo de chats devem eles utilizar? Devem os adultos ter a password de todas as redes sociais em que eles navegam e não os deixar sozinhos nesse submundo cibernético, ou devemos confiar que eles sabem gerir as suas relações e escolher o que veem? E com que idade é suposto eles terem telemóveis com acesso à internet? Computadores: no quarto ou apenas na sala? Tablets: a partir de que idade? Impomos horário de navegação, de chat móvel e de televisão ou o limite é apenas a hora de dormir? E a televisão: o Walking Dead é para que idade? Quantas horas é que eles devem ver poder ver televisão e a que horas? Entre o telejornal e o Disney Channel, quem deve ganhar tendo em conta que os pais podem ver o telejornal quando os filhos forem para a cama?
Nós, pais, somos todos os dias confrontados com decisões destas e andamos literalmente aos papéis a tentar descobrir os melhores modelos para copiar. Entretanto, a realidade ultrapassa-nos todos os dias. Hoje, cada membro de uma família tem os seus programas de televisão, o seu telemóvel, o seu tablet, as suas redes sociais e cada um tem uma realidade distinta mesmo que esteja sentado ao lado do pai ou do irmão no sofá da sala. Hoje, os limites não são tecnológicos ou financeiros e a escolha é um exercício diário frenético. Hoje, os pais são obrigados a ter bom senso, a ler sobre tecnologia, psicologia e pedagogia e a optarem todos os dias entre verem o Disney Channel em família ou o House of Cards sozinhos e de madrugada. Já dantes, bastava que os pais trancassem o telefone com um cadeado e mandassem calar a filharada para viverem descansados.
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