É indigno e imoral um partido falar de morte digna
vitorcunha | Blasfémias | 21 OUTUBRO, 2014
De vez em quando retorna a conversa sobre eutanásia, seguindo um ciclo inverso à publicação de fotos em bikini nas redes sociais pelas mesmas pessoas que conseguem ter ideias brilhantes para e por todos nós, graças a Zeus. Invariavelmente, é conversa atirada por gajos e gajas bonitos, com idades perfeitas entre os 30 e os 50, em forma, com todas as pernas e braços, pele viçosa, sem espinhas e eczemas embaraçosos, deformidades, comensais esporádicos em restaurante com estrela Michelin, com bicicleta de marca e tendo algum historial de férias caribenhas ou nas índias. Pessoas com a arrogância que a beleza e o pico do interesse sexual tendem a transformar em ídolos pop mascarados em escritores que ninguém lê, deputados que ninguém sabe ter elegido e agentes culturais cujos sazonais poios não passam o crivo de um bilhete parcialmente pago, quanto mais pago na totalidade.
Nunca se vêem paraplégicos acamados, com feias escaras, num quarto húmido decorado com crucifixo carcomido e desumidificador em saldo da Worten, que clamem por eutanásia. Nunca se vêem, sobre esse tema, os já viúvos no solitário caminho para a demência profunda, embaraçados em decrescentes momentos de coerência com o mijo que escorre para a sarjeta na momentaneamente eterna desconhecida paragem de autocarro. Quem fala desta problemática – porque para um progressista, outros morrerem é uma problemática – é sempre belo, educado, letrado, atraente, charmoso e dispensa Viagra. Tem o cabelo imaculado. A barba perfeitamente aparada. É uma besta cuja noção de sensibilidade termina na barreira de suor entre os corpos que copulam intelectos, entranhada no eu-eu-eu-eu instagramico que é palco da disjuntiva relação entre a vaidade e o bem-colectivo.
Nenhum destes abetumados néscios vê além de si próprio e do brilharete que origina a sua exímia e cultivada inteligência. Não imaginam que a percepção da eutanásia para o velho acamado é a do fardo, a do "não dar trabalho", a do lastro que impede a plena realização dos familiares responsáveis pelo seu cuidado. Não imaginam que a esmagadora maioria dos velhos que pede para morrer está, quando crê falar a sério, a emanar altruísmo puro, a libertação de outros da carga que para esses é a própria existência alheia.
A morte é assunto demasiado sério e muito pouco compreendido para ser discutido por quem salta entre aborto livre, supressão de puberdade a crianças ditas transgénicas, cheias de Lisboa, tourada, efebofilia, mais-uma-linha-de-coca na urbe lisboeta a oeste de Marvila, amanhã-estou-na-SIC-Notícias, casamento entre plantas e a patológica crucifixofilia republicana do club des Jacobins.
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