Amputação

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2014.10.15

Tenho problemas respiratórios desde pequeno, com asma, bronquites, etc. Viver com os meus pulmões não é nada fácil, mas nunca me passou pela cabeça andar sem eles. Tenho tido problemas com a minha mulher desde que casámos. A vida de família nunca é simples e em inúmeras coisas discordamos frontalmente. É assim em todos os casais, mas haverá alguma razão para eu pensar em viver sem ela?
Realmente a questão, tal como a anterior, nunca me passou pela cabeça, e pelas mesmas razões. Só falo disto porque surpreendentemente imensa gente considera a segunda cisão, sem encarar a primeira, ou notar a incongruência.
Todas as zangas conjugais invocam a dificuldade em viver juntos, mas nenhuma dessas pessoas tem mais complicações na vida do que eu com os meus pulmões, sem alguma vez pôr a hipótese de me separar deles. A questão nunca é, pois, a dimensão das ofensas e os agravos, mas a disponibilidade do corte radical. Todos suportamos graves inconvenientes pela nossa estatura, inteligência, classe social, clima, orografia do sítio onde vivemos e inúmeras características pessoais, sem que isso implique separação e rutura. Estas acontecem não pela dimensão do sofrimento, mas por colocarmos essa possibilidade. E uma vez colocada, razões não faltam e passa a acontecer frequentemente.
Sei que existem transplantes de pulmões e até de coração, amputação de membros e outras intervenções drásticas. Mas o que as caracteriza é precisamente a última palavra: "drásticas". Acontecem só em risco iminente de morte, porque a atitude da medicina é que, mesmo com grandes dor e sofrimento, é sempre melhor cada um ficar com o corpo com que nasceu. A ciência, apesar dos espantosos avanços, procura permanentemente curar, tratar, corrigir, melhorar, apenas substituindo em caso desesperado. Isto é verdade dos dentes ao fígado, do sangue aos pés.
No que toca à família, aquele corpo a que pertencemos desde que nascemos, de forma tão visceral como o organismo, o nosso tempo prefere a opção inversa. Ao menor problema a sociedade opta pela amputação e transplante, quase como solução inicial, muitas vezes até descurando analgésicos e paliativos simples e acessíveis. O exemplo mais evidente é no casamento, em que atualmente a precariedade é muito mais abundante do que no emprego. Mas neste tempo individualista cortes de relações são comuns noutros laços familiares, chegando até ao aborto.
A aberração torna-se visível se considerarmos qualquer outra época, região ou cultura. Uma breve consulta mostra que, apesar da enorme variedade de costumes, hábitos e tradições, o divórcio, a existir, tem estatuto semelhante à amputação de membros. O motivo é óbvio: uma sociedade que trocasse de cônjuges (ou pulmões) com a facilidade com que troca de casa ou de emprego só poderia morrer. Precisamente como a nossa definha demográfica e culturalmente. A salgalhada familiar atual nunca aconteceu, a não ser talvez em épocas de decadência civilizacional, aliás causada precisamente por ela.
Talvez o mais surpreendente seja que já todos tomamos isto como normal. Aliás, a comparação da minha mulher com os meus pulmões parece aberrante e incompreensível. Uma sociedade materialista prefere equiparar com o telemóvel, o carro, no máximo o apartamento. No entanto, se pensarmos um pouco, é fácil compreender que na vida pessoal o cônjuge é mais vital do que os pulmões, não menos. Porque realmente a rejeição orgânica aos transplantes é maior no casamento do que nas operações cirúrgicas, e abundam mais as vidas destruídas por rutura conjugal do que por intervenções médicas. Isto para não falar nos filhos, nos idosos, nos doentes e noutros fragilizados, para quem a zanga dos cônjuges é mais aflitiva e destruidora do que a asma.
O futuro voltará a tratar o casamento como ele realmente é: uma enxertia definitiva na árvore genealógica, onde todos somos apenas ramos, que morrem se cortados do tronco. O futuro lamentará o tempo louco que esqueceu esta verdade essencial e, pela sua desgraça, provou a toda a humanidade essa importância vital.

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