Amor à verdade

António Bagão Félix | Voz da Verdade | 2014.10.26 

Escreveu o Papa Emérito Bento XVI na Encíclica Caritas in Veritate que "sem verdade, cai-se numa visão empirista e céptica da vida, incapaz de se elevar acima da acção porque não está interessada em identificar os valores - às vezes nem sequer os significados - pelos quais julgá-la e orientá-la. A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32)".
A verdade existe por si. A mentira subsiste por nós. A verdade dá trabalho porque exige a consonância da sua essência com a predisposição da nossa mente e coração. A mentira implica a imaginação do seu fabrico e exige memória para não ser atraiçoada ao virar da esquina.
A verdade é uma prova de fundo, uma espécie de maratona na nossa consciência e na consciência de vivermos em sociedade. Vai sempre longe, chega primeiro e não ofegante. A mentira é uma modalidade de velocidade rápida, quanto muito de meio-fundo, às vezes perigosamente de estafeta. Desiste ou perde-se na pista.
O problema é que, não raro, ganha na secretaria o que perde na corrida. Sobe ao pódio, escarnece da verdade e recebe medalhas de ouro.
Cada vez mais é necessário que o cristão exprima na acção, na palavra, no testemunho, no serviço, a ideia central de amor à verdade, não podendo alimentar a tendência que Bento XVI exprimiu na sua última Encíclica de "um contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente senão mesmo refractário à mesma".
A verdade é também indissociável do património inalienável da Paz. Foi, aliás, neste contexto que, por exemplo, S. João Paulo II escreveu a mensagem do Dia Mundial da Paz de 1980 intitulada "A verdade força da Paz" e Bento XVI retoma o tema em 2006 com "Na verdade, a Paz".
Semanticamente antónimos, a verdade não é um aditivo que anule uma mentira, nem esta é uma esponja que obnubile a verdade. Como escreveu Jean Cocteau "Uma garrafa de vinho meio vazia está meio cheia. Uma meia mentira nunca será uma meia verdade".
A mentira, para muitos, transformou-se numa espécie de nova especiaria comportamental que assume diferentes formas: a propriamente dita ou seja por acção, a omissão, o exagero, o rumor, a incoerência, a ilusão.
Aparentemente, estamos perante uma contradição. Há mais informação, a notícia corre célere, a imagem documenta até em excesso, e, todavia, o boato e o rumor florescem, a cada instante, em toda a parte. O rumor e o boato convivem bem com a sociedade de informação e as redes sociais. Tentando buscar razões, talvez o boato seja uma forma, simultaneamente leviana, mordaz e apelativa, de quebrar o círculo rotineiro, em que muita gente se deixou aprisionar. O boato refugia-se no anonimato, forma perversa de irresponsabilidade. O boato tem a força que resulta de ser informe, insidioso, larvar. Por isso, o seu desmentido perde no confronto, porque, ao contrário do boato, tem que ser rigoroso na forma e exigente na substância. O rumor é o mensageiro da mentira, da insinuação torpe, da meia-verdade, sem rosto. Como na sua origem latina, boatus, significa um grito forte. Não nos decibéis, mas na sua capacidade de auto-reproduzir-se. Veja-se o que por aí vai nas redes sociais, onde se junta o progresso social do seu benefício com o retrocesso humano do seu malefício.
Concluo citando, a propósito, o Papa Francisco na sua recente Exortação Apostólica: "Os esforços à volta dum tema específico podem transformar-se num processo em que, através da escuta do outro, ambas as partes encontram purificação e enriquecimento. Portanto, estes esforços podem ter o significado de amor à verdade".

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