PAPA FALA SOBRE BIG BANG E EVOLUÇÂO

Carlos Fiolhais, De Rerum Natura , 2014.10.29

Artigo do DN de hoje sobre ciência e religião, para o qual fiz declarações.

Podem as teoria do Big Bang e da evolução das espécies conjugar- se com a doutrina católica para explicar a origem do universo e da vida? A ideia foi defendida pelo Papa Francisco, num discurso na Academia Pontifícia de Ciências, em Roma. O DN perguntou a um cientista, Carlos Fiolhais, e a uma teóloga, Teresa Toldy, se a ciência pode servir de base à religião. Fiolhais confessou maiores reservas, admitindo mesmo que este pode ser um caminho "perigoso".

No seu discurso, o Papa Francisco admitiu não ser boa ideia interpretar à letra o Génesis, capítulo da Bíblia que nos diz que os céus resultam de uma "expansão das águas", as estrelas servem "para iluminar a Terra" à noite, Deus criou o homem "à sua imagem" e foi por terem provado o fruto "da árvore do conhecimento" que Adão e Eva acabaram expulsos do jardim do Éden.

"Quando lemos sobre a criação no Génesis, corremos o risco de imaginar que Deus era um mágico, com uma varinha de condão capaz de fazer tudo", reconheceu.

Francisco – que teve formação como químico antes de se tornar padre – prosseguiu assumindo a relevância das duas teorias referidas, ainda que não deixando de encaixar nas mesmas a intervenção divina: "O Big Bang, que hoje consideramos ser a origem do mundo, não contradiz a intervenção do divino criador mas, antes, precisa dela", defendeu. E "a evolução na natureza não é inconsistente com a noção de criação, porque a evolução exige a criação de seres que evoluem".

"Fundamentos para a crença"

É precisamente este "casamento" entre religião e ciência que incomoda Carlos Fiolhais, físico e um dos mais conhecidos divulgadores científicos portugueses. "Isso é um pouco mais perigoso. O perigo está em uma pessoa querer ir buscar à ciência fundamentos para a crença", explica. "A crença em Deus, segundo penso, radica num ato que de modo algum tem sustentação científica. A fé, a crença, é um salto, que algumas pessoas conseguem dar e outras não, que é um impulso para o desconhecido. Fé é querer o desconhecido."

Significa isto que não podemos ser crentes e cientistas? Nada disso, diz. "O que digo é que são coisas diferentes, que podem ser feitas pela mesma pessoa. Um dos criadores da teoria do Big Bang foi um padre católico belga, Georges Lemaître. Mas ele sabia que, quando estava num laboratório, no instituto, não estava na capela." Outro exemplo, Galileu Galilei, perseguido pela Igreja por ter refutado a crença de que a Terra estava no centro do universo: "Galileu sempre foi um homem católico. Nunca deixou de o ser. Mas ao mesmo tempo dizia: ' O Espírito Santo ensina- nos como ir para o céu, não como é o céu."

Fé e explicações são compatíveis

Teresa Toldy, teóloga e professora universitária, também entende que "o discurso religioso é uma coisa e o discurso científico outra". Mas não considera que o Papa Francisco estivesse a tentar encaixar as duas variáveis numa só"

Acho que o que ele está a dizer é que uma não é incompatível com a outra", defende. "Nós podemos, por exemplo, falar do afeto a partir da poesia, da literatura ou da ciência. Todas são tentativas de interpretação do afeto. Não podemos dizer que são discursos incompatíveis. O que não podemos é afirmar que é a partir da literatura que se explicam os processos neuronais que levam ao afeto."

A teóloga acrescenta que, embora a fé, por definição, dispense a apresentação de provas, isso não significa que tenha de ser acrítica: "Uma coisa é dizer que a fé é uma evidência [ em si mesma]. Outra coisa é dizer que, pelo facto de ser uma evidência, é irracional. Não procura explicações. Não é a mesma coisa", defende

Num aspeto, cientista e teóloga estão de acordo: há muito que a ciência deixou de ser encarada como uma ameaça às convicções da Igreja e aos ensinamentos das escrituras: "Nesse aspeto, o que o Papa disse não é novidade", diz Teresa Toldy. "Há quase cem anos que a Igreja não faz uma interpretação literal da Bíblia."

Ainda existem "grupos mais fundamentalistas", admite. "Mas no catolicismo e não na Igreja Católica". E o mesmo acontece na comunidade científica, diz Carlos Fiolhais: "Nunca percebi as cruzadas da ciência contra a religião. Essas pessoas também estão a levar a Bíblia à letra. Séculos depois, ainda não entenderam Galileu."

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