Autocrítica, porquê?

José António Saraiva | Sol | 2014.10.20
Que razões de queixa tem a esquerda da presidência de Cavaco Silva?

As redes sociais tiveram o grande mérito de pôr a nu certas características dos portugueses. Nove em cada dez comentários são negativos - e a maior parte deles são de um nível lamentável.
Dois tipos de posts são mais frequentes na net: as denúncias raivosas dos 'privilégios' dos outros - pelos ordenados, pelas reformas, etc. - e os ataques violentos a figuras públicas.
Os primeiros decorrem da inveja, os segundos da maledicência. 
De há uns anos para cá, um dos alvos preferidos desta maledicência tem sido o Presidente da República. 
No 5 de Outubro, Cavaco Silva foi mais uma vez o bombo da festa, por ter criticado os partidos e o sistema político sem fazer - disse-se - uma "autocrítica".
Mas teria de a fazer? 
A memória é curta. Em meados dos anos 80, Cavaco Silva fez com que muitos portugueses voltassem a acreditar na democracia.
Quando assumiu a chefia do Governo, em 1985, a imagem dos políticos e dos partidos estava de rastos.
As pessoas começavam a descrer das virtudes da revolução de 25 Abril.
O desânimo era completo.
Com a agravante de os dois maiores partidos, o PS e o PSD, se terem desacreditado ao mesmo tempo, após um Bloco Central que caíra sem honra nem glória.
Foi nesse ambiente depressivo que surgiu Cavaco Silva.
Aparecendo de rompante, com a imagem do antipolítico - mais preocupado em fazer obra do que em fazer discursos ou manobras de bastidores -, impôs-se imediatamente.
Qual vulcão, revolucionaria nos dez anos seguintes a face do país - construindo centenas e centenas de escolas (correspondendo a um boom estudantil), edificando dezenas de hospitais distritais, terminando a auto-estrada para o Porto (que era uma obra planeada há décadas e nunca acabada), construindo a auto-estrada para o Algarve e a Via do Infante, erguendo a Ponte Vasco da Gama...
Foi uma época de realizações só comparável ao período em que Duarte Pacheco liderou as Obras Públicas, nos anos 40.
Nesta tarefa, Cavaco Silva contou com o entusiasmo de um homem com grande capacidade de concretização, Joaquim Ferreira do Amaral.
O país voltou a acreditar: Portugal crescia e estava 'na moda'. 
Havia confiança e optimismo. 
Sem surpresa, Cavaco alcançou duas maiorias absolutas com mais de 50% dos votos.
Nunca se tinha visto nada assim - pois nunca um partido obtivera sozinho, sequer, uma maioria absoluta. 
Portanto, Cavaco Silva tem de fazer autocrítica porquê?
O que fez de mal?
Na última campanha para Belém, Cavaco foi atacado com brutalidade por causa do BPN.
Ora, que crime cometeu?
Houve alguma coisa de errado no facto de ter aplicado economias resultantes do seu trabalho em acções de um banco dirigido por pessoas que tinham estado nos seus governos?
Recorde-se que vendeu as acções antes de assumir a Presidência da República - e vendeu-as por um preço inferior a outras transaccionadas na mesma altura.
Nem se pode falar, portanto, de um preço 'de favor'.
Alega-se que tinha amigos pouco recomendáveis.
Até Mário Soares o disse - o que não deixa de ser irónico tendo em conta as trapalhadas da Emaudio e da TDM (Televisão de Macau), envolvendo os seus amigos Tito de Morais, Carlos Melancia, Rui Mateus, etc.
É verdade que 'cavaquistas' como Oliveira Costa, Dias Loureiro, Arlindo Carvalho ou Duarte Lima se meteram em casos complicadíssimos.
Mas muitos outros mostraram depois do fim do cavaquismo apreciáveis qualidades políticas ou profissionais: Durão Barroso, Miguel Cadilhe, Leonor Beleza, Eduardo Catroga, Manuela Ferreira Leite, Marques Mendes, Fernando Nogueira, Silva Peneda, Miguel Beleza, Santana Lopes, Valente de Oliveira, Mira Amaral, Ferreira do Amaral, Faria de Oliveira, Deus Pinheiro, Couto dos Santos, Álvaro Barreto, Oliveira Martins, Teresa Gouveia, Azevedo Soares, Luís Filipe Pereira, Laborinho Lúcio, Arlindo Cunha, etc.
Olhando para estes nomes, pode dizer-se que o cavaquismo foi uma escola.
Finalmente, pergunto: que razões de queixa tem a esquerda da presidência de Cavaco Silva? 
Não ter demitido o Governo?
Mas não é hoje evidente que, se o tivesse feito, Portugal não teria escapado a um segundo resgate e os portugueses estariam hoje em situação muito pior?
E quando pensamos no que Mário Soares fez a Cavaco quando este era primeiro-ministro - organizando dois congressos para o denegrir, uma presidência aberta para o desmentir, várias entrevistas para o atacar (como quando falou no «direito à indignação») - e o comparamos com o comportamento do actual Presidente relativamente à esquerda, verificamos como a diferença é abissal. 
Se Cavaco tivesse feito à esquerda (PS incluído) um décimo do que Soares lhe fez a ele, teria caído o Carmo e a Trindade.
Aliás, o eleitorado tem reconhecido os méritos de Cavaco Silva, concedendo-lhe quatro maiorias com mais de 50% dos votos (as duas referidas como primeiro-ministro, e mais duas como Presidente da República, à primeira volta) - o que é um feito quase irrepetível. 
Perante este percurso, como se percebem tantos ataques a Cavaco?

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